A ordem do planeta é mortífera e absurda; há que mudar essa ordem criminosa do mundo.
O humanismo ou qualquer escrúpulo moral simplesmente não são possíveis num mundo onde reina necessariamente, estruturalmente, a avidez, o desejo de poder e o cinismo mais violento.
O direito à independência, o direito à soberania, é hoje em dia um luxo dos países poderosos, dos países ricos.
Quando os países pobres exercem esse patriotismo, esse patriotismo se converte em populismo ou pior ainda: em terrorismo, e constitui uma ameaça para o mundo.
Então, nós não temos o direito a nos defender, só a obedecer ao que os outros decidem por nós e esses outros são os que exercem o governo mundial.
Os verdadeiros donos do mundo, hoje em dia, em primeiro lugar são invisíveis, não estão submetidos a nenhum controle social, sindical, parlamentar.
São homens na sombra que procuram o governo do mundo.
Detrás dos Estados, detrás das organizações internacionais há um governo oligárquico de muito poucas pessoas, mas que conta com uma potência, uma influência, um controle social sobre a humanidade como Papa algum, imperador ou rei algum, tiveram na história da humanidade.
Mas quem é esse assassino em série que mata tudo em que toca?
Haveria que metê-lo na cadeia, acho. Mas não se pode meter na cadeia este assassino em série porque ele tem as chaves de todas as cadeias, porque é um sistema universal de poder que transformou o mundo num manicômio e num matadouro.
A ORDEM CRIMINOSA DO MUNDO
A miséria mais extrema se faz visível em distintos cenários do planeta, como esta lixeira onde se alimentam 500 famílias miseráveis nas Honduras.
São visões obscenas e repetidas num mundo que durante os últimos 20 anos mudou de forma vertiginosa.
Depois de mais de quatro décadas de guerra fria, o combate entre as utopias capitalista e comunista se saldou com o desmoronamento do bloco socialista, e a confrontação político-militar entre o leste e o oeste foi substituída por uma profunda divisão econômica entre o norte e o sul.
Desde a queda do muro de Berlim as fronteiras internacionais já não separam sistemas políticos com modelos sociais opostos mas nações enriquecidas de povos empobrecidos.
A atual "cortina de ferro" está na barreira que detém os imigrantes, como portas intransponíveis de um norte opulento, graças à exploração do sul.
Uma nova ordem mundial tão rígida como a anterior se estabeleceu sob o controle de super-poderosas multinacionais de capital.
Um sistema universal de poder com o credo do neoliberalismo como ideologia e que encontrou seu principal inimigo numa devastadora violência terrorista.
Um modelo extremamente injusto onde desaparecem os antigos sonhos políticos e cuja análise se faz urgente.
Jean Seagler é uma das mentes mais lúcidas da esquerda europeia. Professor de Sociologia nas Universidades de Sorbonne e Genebra, seus ensaios políticos deram-lhe prestígio mundial.
Há muitos anos que as suas análises radicais ressoam no seio da Segunda Internacional e seus informes como relator das Nações Unidas constituem inapeláveis registros de acusação contra a injusta distribuição da riqueza.
Eduardo Galeano é um dos intelectuais mais respeitados da esquerda Latino-Americana. Um valente trabalho jornalístico de clara oposição à barbárie militar no Cone Sul o forçou ao exílio.
Seu insubornável compromisso ético que se manifesta em toda a sua obra por meio de uma deliciosa ironia poética valeu-lhe o reconhecimento internacional da sua figura literária.
As vozes críticas de Galeano e Seagler se cruzam para desnudar e retratar o implacável sistema de poder que parece estar se consolidando nos inícios do Século 21.
E às suas opiniões se somam as de outras personalidades como o dirigente campesino colombiano Héctor Mondragón, os missionários espanhóis na África, José Callado e Angel Ularan, o jurista norte-americano William Gutman, a ex-ministra da cultura do Mali, Aminata Traoré, o Juiz espanhol Baltazar Garzón e o escritor argentino Ernesto Sábato, numa tentativa comum de examinar a nova ordem do mundo.
OS DONOS DO MUNDO
O Estado tal como o conhecemos, o Estado Nacional que surgiu da Revolução Francesa no Século 18, da unificação dos distintos países europeus, é um Estado Territorial.
É territorial, suas leis deixam de ter efeito além das suas fronteiras, assim como a sua polícia e justiça. Seu grande poder de legislar está delimitado pelo território.
Mas os donos do mundo, os donos do capital financeiro mundializado são totalmente independentes de qualquer forma de território.
Porque no processo de criação do mercado globalizado, de unificação do mundo sob a lei do lucro máximo, um dos tipos de capital emancipou-se: o capital financeiro, o capital virtual, o capital líquido, o capital móvel, que se faz visível e toma corpo nas Bolsas e que domina o capital comercial, o capital industrial, o capital social em todas as suas formas.
Na Bolsa, quando encerra Tóquio, abrem as de Frankfurt, Madrid, Paris e Londres e quando encerram as Bolsas Europeias, ganham destaque as de Nova Iorque e Chicago.
Portanto, o capital financeiro percorre o planeta as 24 horas do dia com uma única finalidade:
O LUCRO MÁXIMO.
Nos EUA vemos que os mesmos executivos que são diretores do grupo City Bank composto pela Chevron, a Monsanto - que pertence ao mesmo grupo - a General Dynamic que é a Rooselt, a Harley Borton - do Vice-Presidente Cheney - quer dizer, os mesmos que foram Presidente, Gerente ou Membros das Mesas de Diretores, são hoje o Estado, o Governo dos EUA, quer dizer, já não podemos falar de um governo na sombra destes Grupos, mas sim que através do Governo dos EUA estes Grupos começaram a exercer diretamente o poder, e os que são meramente subordinados são a maioria dos governos do mundo que dependem deles.
A Globalização é uma grande mentira. Os donos do grande capital que dirigem o mecanismo da Globalização dizem:
Vamos criar uma economia unificada pelo mundo inteiro e assim todos poderão desfrutar da riqueza, do progresso científico, do progresso comercial, dos progressos da liberdade.
O que realmente acontece, se observarmos a economia, é que existe uma economia de arquipélagos que a Globalização criou.
Existem algumas ilhotas extremamente ricas, extremamente poderosas e continentes inteiros que desaparecem na escuridão.
Não há dúvida que entre as organizações inter-estatais visíveis que estão na vitrine da Globalização, três organizações são as mais poderosas, que dominam, que regulam os acontecimentos econômicos: são o Banco Mundial, o FMI e a OMC... são "Bombeiros-Pirômanos"...!
E são fundamentalmente organizações mercenárias da oligarquia do capital financeiro invisível mundial.
A política do FMI, como a do BM, eu não a vejo clara por lugar algum porque não se vêem os benefícios. Eu aqui por mais de 30 anos vejo que a pobreza aumenta, os ricos do país são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, a agricultura vai para baixo, a pecuária vai para baixo, tudo vai para baixo.
Se houvesse efeitos saudáveis para toda esta gente, se poderiam ver.
Eu não os vejo em lugar algum. É a mundialização da pobreza, não da riqueza.
Eu não creio que se possa lutar contra a pobreza e criar uma estratégia de luta contra a pobreza sem lutar contra a riqueza e contra os ricos, mesmo porque
"os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres".
O FMI é dirigido por 5 países, e sobretudo um que é quem tem o direito de veto, mas digamos cinco.
O Banco Mundial é um pouco mais democrático pois o dirigem oito países.
A OMC, que é quem nos condena a cobrar cada vez menos e a pagar cada vez mais, nos seus estatutos estabelece o direito de voto, mas nunca se votou, jamais.
UM CAPITALISMO ASSASSINO
O capitalismo de hoje, tal como se foi desenvolvendo ao longo do planeta, com o mercado mundial unificado como instância única, com essa mão invisível que decide quem morre e quem vive neste planeta, é na realidade um "Killer Kapitalismus", um termo alemão que os economistas marxistas alemães inventaram.
O capitalismo da selva, que mata, que assassina.
Poderia utilizar uma multidão de exemplos, e escolho a fome: todos os dias neste planeta , segundo a FAO, cem mil pessoas morrem de fome ou por causa das suas consequências imediatas.
No ano passado, a cada 5 segundos uma criança com menos de 10 anos morria de fome.
E no ano passado, também, 856 milhões de pessoas, uma em cada 6, tem permanecido mal nutrida de forma grave e permanente.
As cifras indicam que a pirâmide de mártires aumenta e tudo isto acontece num planeta que, segundo a FAO, poderia alimentar em condições normais com 2700 KCAL por dia para um adulto normal, a 12 bilhões de seres humanos e somos 6 bilhões, ou seja, quase o dobro da população mundial atual, ou seja, que nesta matança cotidiana de fome, não há fatalidade alguma.
Estas pessoas não sofrem pela situação de fome atual, estão numa situação de fome crônica.
Quando as crianças chegam a esta situação, já não comem. Isto clama aos céus!
Mais que ao céu, também, clama ao Ocidente, clama ao Primeiro Mundo.
É incompreensível, é impensável, é absurdo, é injusto - coloque os adjetivos que quiser - que o Primeiro Mundo esteja exigindo ao mundo daqui, ao Mundo Africano, que pague as dívidas de um capital que já foram pagas e isso significa tirar a comida destas pobres crianças. Isso não vai ajudar em nada lá e isso está tirando o pão aos nossos filhos.
Isso é criminoso, é como um genocídio organizado a um nível internacional.
Até 30 anos atrás, 40 anos, ninguém tinha dúvida da justiça como um valor universal e, portanto, todos, mal que bem, até a direita mais recalcitrante, concordavam basicamente, não te digo a indignação ou a denúncia, pelo menos a aceitação que a injustiça ainda existia no mundo.
E agora que somos governados por esta ditadura invisível dos grandes senhores das finanças e das guerras, os "guerreiros e os banqueiros" que mandam no mundo e usurpam uma bela palavra como era a "Comunidade Internacional".
Lindíssima palavra, belíssima expressão! A comunidade internacional que agora é aplicada aos "banqueiros e guerreiros". Comunidade Internacional é o poder que exercem os "banqueiros e os guerreiros".
Bom, antigamente se admitia que um mundo que produz pobreza é um mundo injusto. Ou seja, que a pobreza é filha da injustiça.
Hoje em dia é cada vez mais raro escutá-lo pois acontece que a injustiça já não existe...
... "A pobreza é o justo castigo que a ineficiência merece"...
O MEDO COTIDIANO
Eu não sei se em outras civilizações, em outras etapas da história humana, as pessoas estavam tão presas ao medo como nós estamos agora.
Temos medo de tudo, o tempo todo. Não se pode fazer nada. É um gás paralisante o medo.
Acho que os medos predominantes, que se sentem mais na vida cotidiana, são:
o medo de perder o emprego, que é o pânico típico do nosso tempo, a insegurança laboral, o medo de não encontrar amanhã o nosso posto de trabalho, na oficina ou no escritório, o que faz com que muitos dos direitos sindicais que se obtiveram depois de 2 séculos de lutas estejam agora em perigo de morte, porque ninguém tem coragem de nada, por medo, por pânico, por pânico de perder o trabalho que se tem.
Quem não tem medo de perder o emprego, tem medo de não encontrá-lo, que é um medo semelhante e muitos outros pânicos: o pânico de viver, o pânico de ser, o pânico de mudar, o pânico dos demônios que inventam para nos assustar.
Os direitos democráticos vão morrer. E o que vivemos na Europa hoje em dia é uma terceiro-mundialização sucessiva: os contratos coletivos de trabalho desaparecem, o estatuto do trabalhador desaparece, o trabalho e o homem se convertem numa mercadoria qualquer.
E no local onde se encontre o mercado mais favorável, o capital irá buscá-lo.
Em outras palavras, acontece uma deslocalização permanente.
E o medo da deslocalização faz com que o trabalhador europeu ou a trabalhadora europeia tenham medo e se angustiem pela possibilidade de perder o emprego.
Na União Europeia, que é a potência econômica mais forte que o mundo conheceu, com 400 milhões de trabalhadores e consumidores de muito alto nível, nos seus 25 países, há hoje em dia 19 milhões de desempregados permanentes com uma probabilidade muito alta de não encontrar emprego, que estão excluídos. Assim para não caírem na marginalidade praticamente todos os trabalhadores, desde o Diretor até ao faxineiro, interiorizarão o medo, se submetem voluntariamente, já que não têm garantias sociais.
O trabalho, hoje em dia, vale menos que o lixo. Impunemente os empresários decidem quem trabalha, quem não trabalha e quanto se trabalha. Se trabalha cada vez mais por menos salário. Cada vez mais horas por um salário menor.
Alguns direitos conquistados através de muitas batalhas difíceis, ao longo do tempo, como o direito à sindicalização, se violam hoje em dia com uma escandalosa impunidade.
Esse é um direito aniquilado pela máquina da morte do mundo de hoje. É uma máquina de exterminar direitos, que converteu o trabalhador num mendigo de emprego, num mendigo de salário.
No ano passado as 500 empresas multinacionais maiores do mundo, as 500 maiores, controlaram 52% do Produto Mundial Bruto, ou seja, de todas as riquezas em mercadorias, capital, patentes, serviços produzidos no planeta. Um monopólio! Um poder como nunca tinha existido antes no mundo. E os homens que formam parte dessa oligarquia transcontinental atuam exclusivamente segundo os princípios de "maximização" do lucro.
O que temos de romper é esta violência estrutural.
Os chefes das multinacionais são na realidade senhores da guerra que estão numa batalha permanente para ganhar ainda mais benefícios e ainda mais quota de mercado. E quem paga os gastos são os povos.
A TRAGÉDIA DA EMIGRAÇÃO
A OMC, composta hoje por 147 Estados Membros, deve assegurar e assegura, em nome do capital financeiro, a liberalização total da circulação de mercadorias, capitais, de patentes e de serviços. Desarma portanto os estados do sul frente ao capital multinacional. O que liberaliza são as mercadorias, as patentes, os capitais, nunca as pessoas. As pessoas não aparecem no projeto da OMC, são jogadas sobre as vedações de arame farpado de Ceuta e morrem no Estreito de Gibraltar.
Os homens se reduziram a um problema menor. Totalmente apartados da liberalização mundial.
Os jovens que tomam de assalto Ceuta e Merida têm problemas menores que os europeus porque têm esperança. A Europa está desencantada.
Se a Europa é capaz de fazer isso aos seus próprios cidadãos, então o que é que a Europa guarda para a África?
Embora seja uma mulher, negra, africana, eu digo que está acontecendo alguma coisa nesses enclaves, que ultrapassa a África e a Europa. Acredito que esses assaltos são uma maneira de resposta dos sem direitos, dos sem voz, que vieram dizer às vossas portas:
"Este é o resultado do que vocês denominaram... cooperação para o desenvolvimento... Quando vemos as consequências das privatizações, das fusões e das deslocalizações quando te dizem que uma empresa vai suprimir mil empregos, tu te perguntas países ricos, civilizados, que dispõem de dinheiro, que preferem concentrar o dinheiro nas mãos dumas poucas multinacionais, de uns poucos acionistas, se a Europa é capaz de fazer isso aos seus próprios cidadãos, então o que é que a Europa guarda para a África?
Por isso eu digo que não existe um problema de migração; há um problema com o sistema econômico mundial.
Livre circulação de pessoas! Que piada de mau gosto num mundo que tem milhões de migrantes expulsos pela seca, por essas catástrofes chamadas de "naturais", que de natural nada tem, ou pelas ditaduras, ou pelas guerras, que deambulam procurando casa, e encontram como que uma porta que lhes fecham na cara, esta invasão dos invadidos, pessoas que do Sul vão ao Norte, o Norte que tanto invadiu o Sul nas guerras coloniais e nas guerras que eram coloniais, mas não diziam que eram.
Esta invasão dos invadidos, que é provavelmente o drama mais importante no mundo de hoje, do mundo dos nossos dias. Esta multidão que deambula procurando, esta peregrinação inútil, este êxodo trágico de pessoas que aspiram ser tratadas como se trata ao dinheiro.
Para o dinheiro não há fronteiras, não há problema nenhum. E para os emigrantes, migrantes para o êxodo dos desamparados, dos braços que procuram emprego e destino, TEM MUROS.
Muros grandes, para que os privilegiados possam seguir sendo a minoria que manda e os outros se resignem a ser a maioria que obedece.
PERDA DOS VALORES
Me encontro aí, sem querer querendo, enfim, enrolado em discussões absurdas onde defendo ardentemente os jovens, estes desprestigiados jovens de nossos dias que se supõe que são rapazes vazios - do ponto de vista das gerações anteriores.
A estes a política não lhes importa, se "cagam" para tudo, são uns egoístas, estes "roqueiros" de agora, e eu vou defendê-los, porque acho que têm toda a razão em não acreditar.
Existe um sistema universal de poder que os convida a não acreditar, ou seja, oferece-lhes a fé e os atraiçoa. Eles assistem à política como se fosse um circo onde os melhores são os capazes de fazer as piruetas mais admiráveis para no governo fazerem o contrário do que prometeram.
O que se coloca em questão radicalmente são os valores das "luzes" que durante 250 anos nos deram a república, os estados democráticos, os valores fundamentais.
Um tipo de civilização com a qual temos vivido. E quando dizemos que a economia já não é uma atividade humana, que o Neoliberalismo já não é uma atividade humana, mas sim a tradução duma realidade, de um número determinado de leis naturais.
O que fazemos é expulsar o homem do seu papel como sujeito da história.
Assim negamos frontalmente todos os valores das "luzes", da solidariedade, os direitos do homem, a autodeterminação, o governo por delegação revogável, etc.
Hoje nos encontramos perante estas duas opções: ou escolhemos a defesa desses valores - das "luzes" - mediante o restabelecimento da força do Estado Nacional e de uma normativa internacional, ou nos submetemos aos donos do mundo e às suas leis, que crêem ser naturais, as do LUCRO.
Se a segunda opção for a que se impõe finalmente, então a "selva" vai ficar na Europa, sumiremos na escuridão e a civilização como a conhecemos, pelo menos na Europa, a civilização democrática que herdamos das "luzes" desaparecerá.
Hoje as torturas se chamam de "procedimento legal", a traição se chama de realismo, o oportunismo se chama pragmatismo, o imperialismo se chama Globalização, e às vítimas do imperialismo se lhes chama "países em vias de desenvolvimento", confundindo as crianças com os anões...
E ao sistema que na minha infância e juventude chamávamos de capitalismo chama-se hoje "economia de mercado".
O dicionário também foi assassinado pela organização criminal do mundo, as palavras já não dizem o que dizem, ou não sabem o que dizem.
Se hoje eu digo que faz falta uma rebelião, uma revolução, um desmoronamento, uma mudança total desta ordem mortífera e absurda do mundo, simplesmente estou sendo fiel à tradição mais íntima, mais sagrada da nossa civilização ocidental, europeia, americana.
Me parece que hoje em dia o nosso dever primordial deve ser reconquistar a mentalidade simbólica e dizer que a ordem mundial, tal como está, é criminosa.
Porque é totalmente contrária a todas as exigências do homem e aos textos fundacionais das nossas civilizações ocidentais.
A DESTRUIÇÃO DE DIREITOS
Bin Laden é o demônio profissional com maior êxito e quem melhor cumpre as suas funções, mas não é o único, sempre têm um "capeta" à mão para nos dizer:
"A humanidade está em perigo, hoje é o último dia do mundo."
E muitíssimas pessoas fazem eco dessas vozes do medo que impõem uma ditadura invisível e paralisante que é inimiga da dignidade humana porque os que estão, todos estamos, enjaulados pelo medo já não somos livres, e os que não são livres não podem ser dignos.
O 11 de Setembro do ano 2001 foi algo aterrador.
O terror, o medo, são ferramentas importantes para aqueles que querem reduzir as liberdades civis, e foram utilizadas de modo muito oportunista pelo Governo de Bush, pelo seu Secretário-Geral e pelo seu Secretário de Defesa, como forma de atemorizar o povo e lhe dizer:
"Agora é o tempo de retroceder nesses direitos que tinham assumido durante tanto tempo."
O Presidente tem assessores que lhe escrevem memorandos onde dizem:
"A tortura está bem porque estamos numa guerra diferente".
A todas aquelas pessoas desaparecidas, as que estão em buracos obscuros, nós lhes chamamos "presos fantasmas", provavelmente alguns serão torturados, alguns assassinados. E isso é algo que o povo acha bem, o aprovam, porque estas pessoas são terroristas, são árabes, são muçulmanos, são outros.
Não são nós, como diriam alguns americanos.
Existe uma convenção internacional contra a tortura, existem mecanismos de controle contra a tortura, existe um artigo na Declaração dos Direitos Humanos, que os 191 membros das Nações Unidas assinaram, que proíbe radicalmente a tortura, e no entanto a maior potência econômica e militar do planeta pratica abertamente a tortura, inclusive até causar a morte.
Nos territórios do Afeganistão, em Guantánamo, em Abu Ghraid, no Iraque, existem aviões que cruzam os céus dos países da União Europeia para transportar de um porão de tortura para outro os presos sem os acusar, dos que nada se sabe, dos que não se conhece nem o nome, que foram detidos por comandos enviados pelo senhor Bush, que atuam fora de toda a legalidade internacional.
Há portanto uma destruição. Não só um retrocesso de partes inteiras de capítulos completos dos direitos humanos.
Não temos nenhum indício de que tenha havido execuções extrajudiciais. Mas não há informação, não temos indícios, mas não é possível saber neste momento.
Rights Watch acha que se pode falar de desaparecidos porque existem pessoas, por exemplo, que foram detidas por mais de 3 anos e não existe informação sobre o seu estado de saúde, sobre o lugar de detenção.
Como é possível que se tenha chegado a isto? Bom, porque isso é imprescindível para que todas as "pessoazinhas" que integram esta coisa a que chamamos Humanidade, que aprendamos de uma vez por todas que isso também pode acontecer conosco, que pode acontecer a qualquer um: terminar careca com um uniforme às riscas, humilhado cotidianamente, mijado pelos cachorros num lugar como Guantánamo.
A qualquer um lhe pode acontecer, igualmente com a tortura.
Se a tortura torturasse somente os culpados, não seria eficaz.
Se estivessem presos em Guantánamo somente os culpados de atos terroristas, Guantánamo não serviria para nada.
Servem estes exemplos, estes símbolos de poder funcionam porque emitem medo, emitem medo na medida em que pode acontecer a qualquer um. É um assunto de azar...
O que sucede é que são autênticos crimes de guerra, podendo até chegar a ostentar a categoria de crimes contra a humanidade e na normativa internacional, isso está claríssimo, o poder sobre o submetido é absoluto, portanto algum dia isso terá que ser investigado seriamente e sancionado. Não sei se alguma vez o farão os tribunais militares norte-americanos, ou civis ou alguma instância internacional, mas terá que se fazer.
Fazia muito tempo que a tortura se praticava mas não se pregava, ou seja, não se falava, mas agora se proclama aos quatro ventos que a tortura é uma maravilha.
E afirma-se, partindo do pressuposto falso, que o torturado diz a verdade, e não é verdade que o torturado diga a verdade. O torturado canta melhor que Gardel, diz qualquer coisa.
Todo o torturado se converte na hora num novelista... e num grande novelista...
Não se tortura para obter informação, isso é falso. Se tortura para semear o medo e aí sim temos de reconhecer que a tortura é eficaz, e por isso a tortura é agora objeto de publicidade incessante, porque a máquina do medo, a máquina de semear o medo, utiliza a tortura para prevenir o "delito" da dignidade.
O QUE FAZER?
A primeira coisa que cada um de nós deve fazer é olhar para a situação de frente e não considerar como normal e natural a destruição, por exemplo, de 36 milhões de pessoas, o ano passado, por culpa da fome e da desnutrição. Não temos que aceitar o que os donos do mundo dizem: "são as leis naturais da economia, não podemos fazer nada a respeito, é normal morrer de fome na Etiópia, pela seca, porque o povo não sabe trabalhar..."
... porque se houvesse um só morto de fome em Paris haveria uma revolta.
Temos de rejeitar como algo normal a destruição dos nossos semelhantes por este sistema criminoso e mortífero do mundo.
De nenhum modo devemos permitir que nos intimidem as grandes organizações de comunicação, nem as fábricas das teorias neoliberais das grandes corporações, pois todas as corporações se ocupam primeiro em controlar as consciências, em controlar como podem a imprensa e o debate público. E tratam de ocupar o debate público para esvaziar os cérebros.
Não é um fenômeno recente mas agora se dá com particular intensidade, esta perversa herança colonial que nos convence de que a realidade é intocável. O medo à mudança.
Não se pode. A intenção é boa mas não se pode, temos que ser realistas...
Hoje em dia, quando os ministros da economia são os que realmente governam os nossos países, mas esses ministros da economia são governados, por sua vez, pelo governo que os governa, que são os grandes organismos financeiros internacionais ou supostamente internacionais, imperiais para dizê-lo com palavras mais claras.
Hoje em dia reina esta sorte de ideologia da impotência nascida do medo. Não se pode... E eu penso que esse medo da mudança faz muito, muito estrago, e é um dos medos mais poderosos e importantes nesta sorte de maquinaria mundial do crime, porque é um medo que mata a esperança, ou seja, opera contra a vontade democrática da mudança.
Resta uma esperança que considero muito real e forte, e é a nova sociedade civil planetária.
Karl Marx disse que o revolucionário tem que ser capaz de ouvir a erva crescer.
Na decadência do Estado Nacional, dos partidos políticos, dos sindicatos, perante o crescimento da impotência destas organizações que, por outro lado, são totalmente respeitáveis, está o imperativo moral que se encontra dentro de cada um de nós e que faz que na situação em que estamos, frente a este capitalismo assassino num mundo assassino, no Sul e no Norte, as pessoas se unam.
Aos seus 95 anos, Ernesto Sábato já não faz declarações, mas quis reler o texto que um dia não muito distante escreveu, chamando desde a última curva do seu caminho a resistência contra a injustiça, e as palavras eternas da ética brotaram com sua voz como resposta individual perante um mundo sem piedade.
Creio que temos de resistir, esse foi meu lema, mas hoje quantas vezes me perguntei como encarnar esta palavra, como viver a resistência. Num tempo o surrealismo foi para mim uma maneira de resistência como tinha sido o anarquismo e a minha militância na esquerda.
Mas agora a situação mudou tanto que devemos valorizar detalhadamente o que entendemos por resistir. Não posso dar uma resposta, se a soubesse sairia como esses crentes delirantes, talvez os únicos que em verdade crêem, para proclamar nas esquinas com a urgência que nos hão-de dar os poucos metros que nos separam das catástrofes.
Mas não, incluo esta raiva menos formidável, algo mais silencioso, algo que corresponde à noite, que vivemos apenas uma vela, algo como esperar...