O jurista Miguel Reale Jr. já havia chamado a atenção para isso e agora o jovem jurista, Hubner Mendes, em entrevista ao Estadão ontem, alerta: "Por trás de um juiz corrupto há frequentemente um advogado corrupto".
Claro. Evidente. É um sistema. Um circuito. Duas pontas: o Corruptor, aquele particular que tem interesses mesquinhos e ilegais a defender, e o Corrompido, o magistrado, o chamado "bandido de toga", nas palavras da destemida ministra Eliana Calmon. E fazendo a ligação entre eles o que eu chamo aqui de "advocacia de esgoto", o advogado que faz o "leva-e-traz" entre as duas pontas podres do sistema. Tudo uma grande e malcheirosa imundície, como se vê.
Portanto, Dr. Ophir Cavalcante, Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, é importante o apoio que o sr. tem manifestado em nome da Ordem à ministra-corregedora e ao Conselho Nacional de Justiça, mas não nos esqueçamos que a OAB tem um papel fundamental na moralização do Judiciário: extirpar estes cancros advocatícios, apurando rigorosamente as denúncias que recebe e cassando o registro profissional destes bandidos disfarçados de advogados e advogadas. Essa gentalha entra numa faculdade já ciente de que o diploma é o seu "passaporte para o crime", lhe dando cobertura em suas falcatruas. Reles bandidagem engravatada ou de saia e sapato de bico fino...
Falo com conhecimento de causa. Já denunciei representante de advocacia de esgoto para a OAB, páginas e páginas de denúncias documentadas gravíssimas, e a denunciada não recebeu sequer uma advertência. O corporativismo é uma doença que precisa ser combatida também dentro da classe dos advogados.
Abaixo reproduzo a entrevista do jurista Hubner Mendes, em que ele defende o CNJ, alerta para as extrapolações do STF contra a moralização do Judiciário e lembra do papel importante do advogado no circuito da bandidagem judiciária.
Câmara escura
'A credibilidade do Judiciário depende não só da boa fé dos juízes, mas da imagem que passa', diz Hubner Mendes
Christian Carvalho Cruz - O Estado de S. Paulo
Num programa de TV em 1977, o obcecado Nelson Rodrigues, que faria 100 anos neste 2012, atendendo ao pedido do entrevistador e amigo Otto Lara Rezende, sapecou um conselho aos jovens que se tornaria lendário: "Envelheçam depressa! Envelheçam com urgência!", ele disse, com cara de súplica. O jurista paulistano Conrado Hubner Mendes nasceu naquele ano. Aos 34, portanto, está distante da velhice. Mas se Nelson o tivesse ouvido falar ou lido seus escritos talvez a blague fosse outra.
A corregedora Eliana Calmon negou
que o CNJ tenha quebrado sigilos de juízes
Wilson Pedrosa/AE
Com um doutorado em ciência política pela USP e outro em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia), Mendes analisa as questões jurídicas brasileiras com solidez e clareza incomuns na sua idade e no seu meio, chegado a um vernáculo castiço. E também, por que não?, com certa intrepidez de alma juvenil. "Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto" e "O que explica os privilégios da magistratura, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa carreira em se articular na defesa de seus interesses" são amostras da detida reflexão que ele faz sobre o embate que se instalou no Judiciário depois que a corregedora nacional de justiça, Eliana Calmon, afirmou que por aqui circulam "bandidos escondidos atrás da toga".
Falando de Berlim, onde complementa sua pesquisa sobre o papel de cortes constitucionais em regimes democráticos, Mendes defendeu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão fiscalizador de desvios de conduta de juízes e desembargadores e criticou as liminares do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspenderam momentaneamente as investigações. "Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado exclusivamente nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta", afirmou. "A pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte." A seguir, as palavras do jovem jurista que não tem pressa - ou necessidade - de envelhecer.
Tem-se usado a expressão 'crise do Judiciário' para definir o atual embate entre o CNJ e magistrados contrários a investigações da classe. Existe, de fato, uma crise no Judiciário brasileiro?
Existe um conflito bastante delicado, que não é novo, sobre como controlar a atuação dos juízes. E esse conflito atingiu seu ápice neste momento em que o STF começa a restringir excessivamente os poderes do CNJ com base em interpretações bastante problemáticas sobre o significado prático de independência judicial, definido genericamente pela Constituição. Dessa maneira, aos poucos, a credibilidade do Judiciário em geral, e do STF em particular, que já não eram muito altas, passa a ser mais seriamente atingida.
Há algum risco institucional nessa 'crise'?
Há um lugar-comum que diz que situações de crise apresentam não somente riscos de retrocesso, mas também oportunidades de aperfeiçoamento. Temos que aprofundar um pouco esse lugar-comum. Para evitar o retrocesso e facilitar o aperfeiçoamento é necessário ter cuidado com a maneira pela qual percebemos essa "crise" e formulamos o diagnóstico. Falar do Judiciário em abstrato, como um todo orgânico e homogêneo, não ajuda a entender a natureza do que está ocorrendo. O Judiciário brasileiro vem, aos poucos, tornando-se um poder razoavelmente plural. Há variações não desprezíveis entre o que pensam juízes de diferentes instâncias, regiões, gêneros, idades ou origens socioeconômicas. Essa pluralidade traz consigo disputas ideológicas internas, controvérsias sobre o papel do juiz, sobre métodos de interpretação do direito e assim por diante. A tentação de descrever o atual contexto como um conflito que opõe o Judiciário de um lado e a sociedade de outro leva a conclusões distorcidas. Há forças modernizantes e atrasadas dentro e fora do Judiciário, e temos que mapear adequadamente essas divisões para poder jogar do lado certo desse conflito político.
Qual é o lado certo?
Bom, considero que a posição moral e juridicamente mais defensável seja a de aceitar as competências que o constituinte conferiu ao CNJ. Não porque o constituinte possa decidir o que bem entenda e o STF deva abaixar a cabeça, mas porque, nesse caso, a violação constitucional está longe de ser incontroversa. O STF não tem o monopólio do significado da Constituição. Ele tem, sim, o poder de dar a decisão final numa ação judicial específica. Se essa decisão for implausível, contudo, cabe à sociedade se mobilizar e propor novas ações.
O Judiciário precisa de controle externo?
É um equívoco chamar o CNJ de "controle externo". O art. 92 da Constituição inclui, entre os órgãos do Poder Judiciário, o CNJ. O CNJ, então, integra a estrutura do Judiciário. Mais importante, o art. 103-B especifica quais são os 15 membros do CNJ: 9 membros são juízes, 2 são do Ministério Público, 2 são advogados indicados pela OAB e os 2 restantes são cidadãos de "notável saber jurídico" indicados pelo Congresso Nacional. Portanto, numa leitura bem simplista, são nove do próprio Judiciário contra seis "de fora". No entanto, veja quem são esses seis supostamente de fora: todos membros da mesma comunidade jurídica, portadores do diploma de direito, educados sob os mesmos ritos e convenções. Não se trata de um órgão lá muito plural. Chamar o CNJ de "controle externo" dá a chance de juízes atacarem esse órgão sob o pretexto de que haveria ameaça à independência judicial. Não deveríamos aceitar a discussão nesses termos. O que há é um embate entre dois modelos de controle: um mais centralizado, no qual o CNJ teria mais poder para intervir nas corregedorias estaduais, e outro mais regionalizado, no qual o CNJ teria um papel subsidiário. Na minha opinião, o modelo mais centralizado faz muito sentido no contexto brasileiro. Ele aplicaria de maneira mais plausível o princípio geral de desenho institucional segundo o qual "ninguém deve julgar em sua própria causa", ou seja, os controladores não deveriam ser os mesmos que os controlados. Mas, é claro, ele desestabiliza muitas práticas ossificadas e por isso sofre ataques.
O CNJ extrapola suas funções, como acusam algumas entidades de juízes?
O modelo de controle que tem o CNJ como peça central não está inteiramente pronto e consolidado, mas em processo de construção. É ao STF, na interação com o CNJ, que cabe definir os limites de atuação desse órgão. Sempre haverá uma ou outra decisão do CNJ da qual discordaremos, mas não me parece haver qualquer evidência, até agora, de que ele esteja agindo de maneira abusiva. Eventuais desvios do CNJ devem ser corrigidos pelo STF. Por essa mesma razão, é ainda mais importante ficarmos atentos às decisões do STF. Afinal, a pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte.
Como você avalia as liminares dos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, do STF, suspendendo as investigações do CNJ?
Uma liminar serve para garantir que, antes de uma decisão de mérito, certos direitos não sejam irreversivelmente violados. O STF postergou, por meses, uma decisão da maior urgência. De repente, no último dia antes do recesso judicial, produz duas liminares profundamente interventivas que sobreviverão, pelo menos, até o reinício do ano judicial. O tamanho do dano que essas liminares causarão vai depender de quando o plenário vai se reunir para, finalmente, decidir a controvérsia. O fato de as liminares suspenderem as investigações por algumas semanas me preocupa menos do que a clara tendência de essas liminares defenderem, no mérito, uma visão bastante restritiva sobre o CNJ. Se essas visões prevalecerem, ou se o colegiado demorar muito para finalmente produzir uma decisão, aí sim o problema se agrava. Se o STF ratificar o entendimento das liminares numa decisão final, rejeitará um entendimento do constituinte que é plenamente compatível com a Constituição. Se permanecer em silêncio por muito tempo, como faz em tantos casos, na prática essas liminares passam a definir os limites do CNJ. Como o STF não segue nenhuma regra explícita sobre o momento de suas decisões, exceto seu próprio instinto político, não temos como saber quando essa decisão virá.
De modo geral, os ministros argumentaram que as liminares foram necessárias para preservar a Constituição. Faz sentido?
Isso revela um traço bastante presente no estilo de argumentação do STF. De premissas genéricas e abstratas, das quais dificilmente alguém vai discordar (tais como a independência e autonomia entre poderes, a dignidade humana, etc.), infere-se abruptamente uma solução para o caso concreto. A complexidade desse caso concreto, porém, exigiria muitos outros passos argumentativos entre as premissas e as conclusões. A liminar do ministro Marco Aurélio é um bom exemplo. Ela se inspira numa decisão anterior do ministro Celso de Mello, no qual este diz que o CNJ deve obedecer, nas suas palavras, ao "postulado da subsidiariedade", sem o qual haveria uma "tensão dialética" que comprometeria o "harmonioso convívio entre o autogoverno da magistratura e o poder de controle e fiscalização outorgado ao Conselho Nacional de Justiça". A ideia de subsidiariedade do CNJ não foi estabelecida pela Constituição, e não é nada óbvio que a independência judicial requeira uma atuação meramente subsidiária do CNJ. É essa interpretação que está em disputa, mas os argumentos que até agora foram postos na mesa pelo STF não fazem muito mais do que repetir generalidades do texto constitucional e dali extraírem automaticamente suas conclusões. Dialogar com esse estilo de decisão fica difícil.
O presidente do TJ-SP, Ivan Sartori, acusou o CNJ de desrespeitar as garantias dos magistrados e comparou a ação do órgão aos 'tempos da ditadura'. O que o você acha?
É uma comparação lamentável, que revela alguns dos piores vícios da retórica política. As garantias dos magistrados são indispensáveis para o bom funcionamento do Estado de Direito, mas elas não servem para blindar os magistrados de qualquer investigação sobre desvio de conduta. Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta. Claro que investigações devem respeitar os requisitos legais e proteger a imagem e a honra do juiz enquanto nada for provado, mas daí a dizer que a atuação do CNJ lembra a ditadura existe uma grande distância.
E quanto à defesa que Sartori fez dos dois meses de férias para a magistratura, afirmando que se trata de 'preservar a sanidade mental' dos juízes?
Uma declaração infeliz e surpreendente. Em geral, a falta de bons argumentos para sustentar esse privilégio em relação a outras carreiras públicas é tão patente que juízes preferem permanecer em silêncio sobre ele, e agir apenas nos bastidores para que tal situação seja mantida. Uma forma comum de a magistratura defender seu pacote de privilégios é dizer que a função da judicatura demanda grande responsabilidade, dedicação e estudo, e que para tanto a sociedade deveria pagar o preço adequado. Uma segunda forma, ligada à primeira, é dizer que juízes precisam de incentivos econômicos para seguir a carreira em vez de se dedicar a profissões supostamente mais rentáveis como a advocacia privada, ou então para não serem tentados pela corrupção. Sobre o primeiro argumento, eu perguntaria por que a responsabilidade, dedicação e estudo de tantas outras profissões públicas, como as de médico ou professor, seriam menores (e, supondo que fossem, por que seriam tão desproporcionalmente menores). O segundo argumento, por sua vez, faz diversas suposições difíceis de aceitar: presume que a vocação para a profissão cumpre um papel menor, que a advocacia é sempre mais rentável, que salários altos minimizariam a corrupção. Essas premissas, mesmo que sejam plausíveis até certo ponto, não conseguem sustentar a imensa desproporção dos benefícios entre essa carreira pública específica e tantas outras. O que explica esse descompasso, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa profissão em se articular na defesa de seus interesses.
A impunidade no Judiciário é maior do que nos outros poderes?
É difícil aferir e comparar os graus de impunidade. Provavelmente, o Judiciário é o poder que permanece mais obscuro. Mas não podemos deixar de lembrar outras coisas. Está em jogo o aperfeiçoamento do Estado de Direito como um todo, e para isso precisamos estar mais atentos ao comportamento dos seus dois principais operadores: não somente do juiz, mas também do advogado. Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto. E a corrupção pode ter níveis de gravidade diferentes, alguns não punidos pela lei. Há alguns hábitos da interação entre advogados e juízes que são vistos como normais, mas que muitas vezes são modalidades sutis de patrimonialismo, de confusão da coisa pública com o interesse privado.
A proposta da corregedora Eliana Calmon de proibir que integrantes do Judiciário usem transporte ou hospedagem pagos por pessoas físicas ou empresas em eventos da classe tem relação com essas 'modalidades sutis de patrimonialismo'?
Aparentemente, sim. Não conheço essa proposta no detalhe, e por isso fica difícil formar uma opinião a respeito. No entanto, ela parece tentar regular exatamente algumas dessas interações entre juízes e a sociedade em geral que ainda não são vistas como um problema. Ela parece tentar estabelecer uma noção mais forte de "conflito de interesses", que os institutos da suspeição e do impedimento, na prática, têm se mostrado incapazes de implementar. É preocupante que uma empresa privada financie um congresso de juízes num resort turístico, ou que um juiz se sinta absolutamente à vontade para aceitar o convite que uma entidade de advogados faz para que ele participe de um jantar em sua própria homenagem, ou coisas assim. Não basta que juízes digam que, na hora de julgar, a sua imparcialidade permanece intocada. Eu acredito que a maioria dos juízes, de boa fé, de fato decida de forma indiferente a esses mimos, apesar de ser difícil controlar essa imparcialidade de forma consciente. Seja como for, a credibilidade da instituição judicial depende não somente da boa fé dos juízes, mas da imagem que a instituição passa. E essas práticas só prejudicam tal imagem. Parafraseando aquela máxima sobre a mulher de César, não basta que o juiz seja honesto, mas que pareça honesto.
O Judiciário brasileiro é democrático?
Há vários ângulos pelos quais se pode mensurar a qualidade democrática do Poder Judiciário. Quatro ângulos são da maior importância: primeiro, quão plural é sua composição; segundo, quão acessível ele é para os diversos estratos sociais; terceiro, quanto é transparente e aberto ao diálogo; quarto, quanto suas decisões reforçam ou confirmam valores democráticos. Esse último ângulo é o mais difícil e trabalhoso de quantificar, pois em última análise requer que avaliemos quanto o Judiciário interpreta adequadamente a Constituição e a lei nas suas decisões cotidianas. Nisso eu prefiro não entrar aqui. Os dois primeiros ângulos, por sua vez, já têm sido quantificados pela ciência política: quanto a sua composição, o Judiciário tem se tornado mais plural (em termos de gênero, origem socioeconômica, etc.) no que diz respeito à primeira instância, na qual se entra por concurso público, mas a pluralidade decai significativamente quando se trata de promoção para instâncias superiores, que depende de processos internos ou nomeações do chefe do Executivo; quanto ao acesso de grupos sociais menos favorecidos, há vários avanços importantes que a criação dos juizados especiais e da defensoria pública, entre outras medidas inclusivas, tem ajudado a construir, mas há ainda obstáculos e práticas excludentes. Por fim, a transparência é também complexa e pode ser vista de dois modos: a transparência na gestão de seus recursos, que é exatamente a luta que o CNJ agora enfrenta; e a transparência argumentativa de suas decisões. Em resumo, acho que hoje temos um Judiciário um pouco mais democrático do que há 10 ou 15 anos, mas com um caminho bastante longo a percorrer.
Estadão Online
Destaques do ABC!
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Com um doutorado em ciência política pela USP e outro em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia), Mendes analisa as questões jurídicas brasileiras com solidez e clareza incomuns na sua idade e no seu meio, chegado a um vernáculo castiço. E também, por que não?, com certa intrepidez de alma juvenil. "Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto" e "O que explica os privilégios da magistratura, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa carreira em se articular na defesa de seus interesses" são amostras da detida reflexão que ele faz sobre o embate que se instalou no Judiciário depois que a corregedora nacional de justiça, Eliana Calmon, afirmou que por aqui circulam "bandidos escondidos atrás da toga".
Falando de Berlim, onde complementa sua pesquisa sobre o papel de cortes constitucionais em regimes democráticos, Mendes defendeu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão fiscalizador de desvios de conduta de juízes e desembargadores e criticou as liminares do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspenderam momentaneamente as investigações. "Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado exclusivamente nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta", afirmou. "A pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte." A seguir, as palavras do jovem jurista que não tem pressa - ou necessidade - de envelhecer.
Tem-se usado a expressão 'crise do Judiciário' para definir o atual embate entre o CNJ e magistrados contrários a investigações da classe. Existe, de fato, uma crise no Judiciário brasileiro?
Existe um conflito bastante delicado, que não é novo, sobre como controlar a atuação dos juízes. E esse conflito atingiu seu ápice neste momento em que o STF começa a restringir excessivamente os poderes do CNJ com base em interpretações bastante problemáticas sobre o significado prático de independência judicial, definido genericamente pela Constituição. Dessa maneira, aos poucos, a credibilidade do Judiciário em geral, e do STF em particular, que já não eram muito altas, passa a ser mais seriamente atingida.
Há algum risco institucional nessa 'crise'?
Há um lugar-comum que diz que situações de crise apresentam não somente riscos de retrocesso, mas também oportunidades de aperfeiçoamento. Temos que aprofundar um pouco esse lugar-comum. Para evitar o retrocesso e facilitar o aperfeiçoamento é necessário ter cuidado com a maneira pela qual percebemos essa "crise" e formulamos o diagnóstico. Falar do Judiciário em abstrato, como um todo orgânico e homogêneo, não ajuda a entender a natureza do que está ocorrendo. O Judiciário brasileiro vem, aos poucos, tornando-se um poder razoavelmente plural. Há variações não desprezíveis entre o que pensam juízes de diferentes instâncias, regiões, gêneros, idades ou origens socioeconômicas. Essa pluralidade traz consigo disputas ideológicas internas, controvérsias sobre o papel do juiz, sobre métodos de interpretação do direito e assim por diante. A tentação de descrever o atual contexto como um conflito que opõe o Judiciário de um lado e a sociedade de outro leva a conclusões distorcidas. Há forças modernizantes e atrasadas dentro e fora do Judiciário, e temos que mapear adequadamente essas divisões para poder jogar do lado certo desse conflito político.
Qual é o lado certo?
Bom, considero que a posição moral e juridicamente mais defensável seja a de aceitar as competências que o constituinte conferiu ao CNJ. Não porque o constituinte possa decidir o que bem entenda e o STF deva abaixar a cabeça, mas porque, nesse caso, a violação constitucional está longe de ser incontroversa. O STF não tem o monopólio do significado da Constituição. Ele tem, sim, o poder de dar a decisão final numa ação judicial específica. Se essa decisão for implausível, contudo, cabe à sociedade se mobilizar e propor novas ações.
O Judiciário precisa de controle externo?
É um equívoco chamar o CNJ de "controle externo". O art. 92 da Constituição inclui, entre os órgãos do Poder Judiciário, o CNJ. O CNJ, então, integra a estrutura do Judiciário. Mais importante, o art. 103-B especifica quais são os 15 membros do CNJ: 9 membros são juízes, 2 são do Ministério Público, 2 são advogados indicados pela OAB e os 2 restantes são cidadãos de "notável saber jurídico" indicados pelo Congresso Nacional. Portanto, numa leitura bem simplista, são nove do próprio Judiciário contra seis "de fora". No entanto, veja quem são esses seis supostamente de fora: todos membros da mesma comunidade jurídica, portadores do diploma de direito, educados sob os mesmos ritos e convenções. Não se trata de um órgão lá muito plural. Chamar o CNJ de "controle externo" dá a chance de juízes atacarem esse órgão sob o pretexto de que haveria ameaça à independência judicial. Não deveríamos aceitar a discussão nesses termos. O que há é um embate entre dois modelos de controle: um mais centralizado, no qual o CNJ teria mais poder para intervir nas corregedorias estaduais, e outro mais regionalizado, no qual o CNJ teria um papel subsidiário. Na minha opinião, o modelo mais centralizado faz muito sentido no contexto brasileiro. Ele aplicaria de maneira mais plausível o princípio geral de desenho institucional segundo o qual "ninguém deve julgar em sua própria causa", ou seja, os controladores não deveriam ser os mesmos que os controlados. Mas, é claro, ele desestabiliza muitas práticas ossificadas e por isso sofre ataques.
O CNJ extrapola suas funções, como acusam algumas entidades de juízes?
O modelo de controle que tem o CNJ como peça central não está inteiramente pronto e consolidado, mas em processo de construção. É ao STF, na interação com o CNJ, que cabe definir os limites de atuação desse órgão. Sempre haverá uma ou outra decisão do CNJ da qual discordaremos, mas não me parece haver qualquer evidência, até agora, de que ele esteja agindo de maneira abusiva. Eventuais desvios do CNJ devem ser corrigidos pelo STF. Por essa mesma razão, é ainda mais importante ficarmos atentos às decisões do STF. Afinal, a pretexto de corrigir abusos do CNJ, o STF pode desmontar a espinha dorsal de todo um modelo de controle pensado pelo constituinte.
Como você avalia as liminares dos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski, do STF, suspendendo as investigações do CNJ?
Uma liminar serve para garantir que, antes de uma decisão de mérito, certos direitos não sejam irreversivelmente violados. O STF postergou, por meses, uma decisão da maior urgência. De repente, no último dia antes do recesso judicial, produz duas liminares profundamente interventivas que sobreviverão, pelo menos, até o reinício do ano judicial. O tamanho do dano que essas liminares causarão vai depender de quando o plenário vai se reunir para, finalmente, decidir a controvérsia. O fato de as liminares suspenderem as investigações por algumas semanas me preocupa menos do que a clara tendência de essas liminares defenderem, no mérito, uma visão bastante restritiva sobre o CNJ. Se essas visões prevalecerem, ou se o colegiado demorar muito para finalmente produzir uma decisão, aí sim o problema se agrava. Se o STF ratificar o entendimento das liminares numa decisão final, rejeitará um entendimento do constituinte que é plenamente compatível com a Constituição. Se permanecer em silêncio por muito tempo, como faz em tantos casos, na prática essas liminares passam a definir os limites do CNJ. Como o STF não segue nenhuma regra explícita sobre o momento de suas decisões, exceto seu próprio instinto político, não temos como saber quando essa decisão virá.
De modo geral, os ministros argumentaram que as liminares foram necessárias para preservar a Constituição. Faz sentido?
Isso revela um traço bastante presente no estilo de argumentação do STF. De premissas genéricas e abstratas, das quais dificilmente alguém vai discordar (tais como a independência e autonomia entre poderes, a dignidade humana, etc.), infere-se abruptamente uma solução para o caso concreto. A complexidade desse caso concreto, porém, exigiria muitos outros passos argumentativos entre as premissas e as conclusões. A liminar do ministro Marco Aurélio é um bom exemplo. Ela se inspira numa decisão anterior do ministro Celso de Mello, no qual este diz que o CNJ deve obedecer, nas suas palavras, ao "postulado da subsidiariedade", sem o qual haveria uma "tensão dialética" que comprometeria o "harmonioso convívio entre o autogoverno da magistratura e o poder de controle e fiscalização outorgado ao Conselho Nacional de Justiça". A ideia de subsidiariedade do CNJ não foi estabelecida pela Constituição, e não é nada óbvio que a independência judicial requeira uma atuação meramente subsidiária do CNJ. É essa interpretação que está em disputa, mas os argumentos que até agora foram postos na mesa pelo STF não fazem muito mais do que repetir generalidades do texto constitucional e dali extraírem automaticamente suas conclusões. Dialogar com esse estilo de decisão fica difícil.
O presidente do TJ-SP, Ivan Sartori, acusou o CNJ de desrespeitar as garantias dos magistrados e comparou a ação do órgão aos 'tempos da ditadura'. O que o você acha?
É uma comparação lamentável, que revela alguns dos piores vícios da retórica política. As garantias dos magistrados são indispensáveis para o bom funcionamento do Estado de Direito, mas elas não servem para blindar os magistrados de qualquer investigação sobre desvio de conduta. Não estamos falando de controlar o mérito das decisões que cada juiz toma, para as quais sempre existiu um sistema de recursos, mas de investigar atos de corrupção e má gestão administrativa que o modelo de controle baseado nas corregedorias estaduais não conseguiu dar conta. Claro que investigações devem respeitar os requisitos legais e proteger a imagem e a honra do juiz enquanto nada for provado, mas daí a dizer que a atuação do CNJ lembra a ditadura existe uma grande distância.
E quanto à defesa que Sartori fez dos dois meses de férias para a magistratura, afirmando que se trata de 'preservar a sanidade mental' dos juízes?
Uma declaração infeliz e surpreendente. Em geral, a falta de bons argumentos para sustentar esse privilégio em relação a outras carreiras públicas é tão patente que juízes preferem permanecer em silêncio sobre ele, e agir apenas nos bastidores para que tal situação seja mantida. Uma forma comum de a magistratura defender seu pacote de privilégios é dizer que a função da judicatura demanda grande responsabilidade, dedicação e estudo, e que para tanto a sociedade deveria pagar o preço adequado. Uma segunda forma, ligada à primeira, é dizer que juízes precisam de incentivos econômicos para seguir a carreira em vez de se dedicar a profissões supostamente mais rentáveis como a advocacia privada, ou então para não serem tentados pela corrupção. Sobre o primeiro argumento, eu perguntaria por que a responsabilidade, dedicação e estudo de tantas outras profissões públicas, como as de médico ou professor, seriam menores (e, supondo que fossem, por que seriam tão desproporcionalmente menores). O segundo argumento, por sua vez, faz diversas suposições difíceis de aceitar: presume que a vocação para a profissão cumpre um papel menor, que a advocacia é sempre mais rentável, que salários altos minimizariam a corrupção. Essas premissas, mesmo que sejam plausíveis até certo ponto, não conseguem sustentar a imensa desproporção dos benefícios entre essa carreira pública específica e tantas outras. O que explica esse descompasso, vamos ser sinceros, é o grande poder dessa profissão em se articular na defesa de seus interesses.
A impunidade no Judiciário é maior do que nos outros poderes?
É difícil aferir e comparar os graus de impunidade. Provavelmente, o Judiciário é o poder que permanece mais obscuro. Mas não podemos deixar de lembrar outras coisas. Está em jogo o aperfeiçoamento do Estado de Direito como um todo, e para isso precisamos estar mais atentos ao comportamento dos seus dois principais operadores: não somente do juiz, mas também do advogado. Por trás de um juiz corrupto há, frequentemente, um advogado corrupto. E a corrupção pode ter níveis de gravidade diferentes, alguns não punidos pela lei. Há alguns hábitos da interação entre advogados e juízes que são vistos como normais, mas que muitas vezes são modalidades sutis de patrimonialismo, de confusão da coisa pública com o interesse privado.
A proposta da corregedora Eliana Calmon de proibir que integrantes do Judiciário usem transporte ou hospedagem pagos por pessoas físicas ou empresas em eventos da classe tem relação com essas 'modalidades sutis de patrimonialismo'?
Aparentemente, sim. Não conheço essa proposta no detalhe, e por isso fica difícil formar uma opinião a respeito. No entanto, ela parece tentar regular exatamente algumas dessas interações entre juízes e a sociedade em geral que ainda não são vistas como um problema. Ela parece tentar estabelecer uma noção mais forte de "conflito de interesses", que os institutos da suspeição e do impedimento, na prática, têm se mostrado incapazes de implementar. É preocupante que uma empresa privada financie um congresso de juízes num resort turístico, ou que um juiz se sinta absolutamente à vontade para aceitar o convite que uma entidade de advogados faz para que ele participe de um jantar em sua própria homenagem, ou coisas assim. Não basta que juízes digam que, na hora de julgar, a sua imparcialidade permanece intocada. Eu acredito que a maioria dos juízes, de boa fé, de fato decida de forma indiferente a esses mimos, apesar de ser difícil controlar essa imparcialidade de forma consciente. Seja como for, a credibilidade da instituição judicial depende não somente da boa fé dos juízes, mas da imagem que a instituição passa. E essas práticas só prejudicam tal imagem. Parafraseando aquela máxima sobre a mulher de César, não basta que o juiz seja honesto, mas que pareça honesto.
O Judiciário brasileiro é democrático?
Há vários ângulos pelos quais se pode mensurar a qualidade democrática do Poder Judiciário. Quatro ângulos são da maior importância: primeiro, quão plural é sua composição; segundo, quão acessível ele é para os diversos estratos sociais; terceiro, quanto é transparente e aberto ao diálogo; quarto, quanto suas decisões reforçam ou confirmam valores democráticos. Esse último ângulo é o mais difícil e trabalhoso de quantificar, pois em última análise requer que avaliemos quanto o Judiciário interpreta adequadamente a Constituição e a lei nas suas decisões cotidianas. Nisso eu prefiro não entrar aqui. Os dois primeiros ângulos, por sua vez, já têm sido quantificados pela ciência política: quanto a sua composição, o Judiciário tem se tornado mais plural (em termos de gênero, origem socioeconômica, etc.) no que diz respeito à primeira instância, na qual se entra por concurso público, mas a pluralidade decai significativamente quando se trata de promoção para instâncias superiores, que depende de processos internos ou nomeações do chefe do Executivo; quanto ao acesso de grupos sociais menos favorecidos, há vários avanços importantes que a criação dos juizados especiais e da defensoria pública, entre outras medidas inclusivas, tem ajudado a construir, mas há ainda obstáculos e práticas excludentes. Por fim, a transparência é também complexa e pode ser vista de dois modos: a transparência na gestão de seus recursos, que é exatamente a luta que o CNJ agora enfrenta; e a transparência argumentativa de suas decisões. Em resumo, acho que hoje temos um Judiciário um pouco mais democrático do que há 10 ou 15 anos, mas com um caminho bastante longo a percorrer.
Estadão Online
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