Meses depois, já atuando numa universidade federal, precisei de um advogado para cuidar de uma pendência, e numa de nossas primeiras conversas ele me tratou de "Doutora Sonia"... Aquilo me soou mal, estranhei, achei que ele troçava... mas não. Ele usara a expressão naturalmente. Indaguei então por qual motivo ele se dirigira a mim daquela forma, já que eu era apenas professora da universidade. Ele me explicou que "no Nordeste" era costume se dirigir a todas as pessoas com "nível superior", a todas as pessoas que têm formação universitária, empregando as expressões "doutor" ou "doutora". "Aqui, todo mundo que fez faculdade é doutor, doutora!", afirmou ele.
Surpresa e constrangida, declinei da deferência, e o "autorizei" a quebrar a "norma nordestina", o costume local, e me tratar por "Professora Sonia", "Senhora Sonia" ou apenas pelo meu nome.
A escravidão, os séculos de dominação, de subjugação das elites sobre as camadas mais pobres da população justificam tais costumes, absolutamente descabidos hoje em dia, quando qualquer um consegue um diploma universitário, com a proliferação vertiginosa de faculdades nas últimas décadas. E não vai aqui nenhuma crítica à democratização do ensino. Desde que seja ensino de qualidade, o que nem sempre ocorre.
Teria sentido continuar usando hoje tal tratamento para um reles recém-formado em Direito, saído destas verdadeiras espeluncas que pululam em cada quarteirão, cujo ensino é em geral sofrível, o que explica a reprovação em massa de milhares de bachareis no Exame da OAB?
Vivemos numa democracia imperfeita, num Estado de Direito em construção. Bolsões oligárquicos, aristocráticos, movidos a vantagens e privilégios, verdadeiras castas, ainda existem em vários recantos do País, de norte a sul, inclusive em grandes cidades. Não ignoramos isso.
Mas cidadania pressupõe direitos e deveres iguais. E ela deve permear todas as esferas da sociedade. Assim como rejeitamos aqui, várias vezes, a classificação de "blogueiros de segunda classe", tentada por supostos "blogueiros pioneiros", "blogueiros vip" ou "blogueiros de primeira classe", repelimos também, veementemente, a existência de cidadãos de segunda categoria.
Abaixo, mais um texto interessante para ampliar as reflexões a respeito de relações de subalternidade e dominação e sua manifestação em vários setores da sociedade.
Num país de analfabetos, quem sabe ler é chamado de doutor
Recentemente, chamou-me a atenção à solução de determinada demanda judicial que tramitou na Corte fluminense envolvendo magistrado que pleiteava tratamento formal de doutor por parte dos funcionários do condomínio onde residia. O colega que julgou o caso negou-lhe a tutela jurídica solicitada, alegando que, embora se tratasse de um juiz digno, merecedor de todo o respeito, não poderia ostentar tal faculdade, pois doutor não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau.
Agiu corretamente o juiz sentenciante. O mestre Houaiss, em seu dicionário, ensina que doutor é “aquele que, numa universidade, foi promovido ao mais alto grau depois de haver defendido tese em alguma disciplina literária, artística ou científica”.
Na prática, entretanto, chamamos o juiz, o deputado, o delegado, o promotor, etc., mesmo sem aquela mais alta graduação universitária, de doutor. Por quê?
A lei não confere aos detentores desses cargos públicos a denominação de doutor. A linguagem técnica, recomendável até por uma questão de etiqueta, indicaria chamá-los apenas por senhor seguido da indicação do cargo, ou seja, senhor juiz, senhor deputado e assim por diante.
Semelhante costume atinge aos profissionais da saúde. Chama-se o médico de doutor, mesmo aqueles que não possuem doutorado.
A explicação para a prática em análise é facilmente encontrada. Em um país em que o analfabetismo e a pobreza atingem níveis escandalosos, criou-se o entendimento comum de que, quem consegue concluir um curso superior, qualquer que seja, torna-se doutor.
Com isso, o surgimento desordenado de faculdades privadas — as faculdades de Direito, por exemplo, são quase incontáveis —, às vezes sem o mínimo critério quanto à qualidade do ensino, nos transformará no país dos doutores. Quero deixar claro que não sou contra a democratização do ensino superior, muito pelo contrário, apenas acho que essa democratização deve ter como corolário a produção científica e não a produção de bacharéis e diplomas, com a única finalidade de alimentar a vaidade inerente a natureza humana.
Pior ainda são os doutores do capital, aqueles que ostentam o título pela força da riqueza, mesmo sem nunca terem freqüentado uma faculdade, demonstrando a arrogante supremacia do dinheiro sobre a produção do gênio humano.
Conheci grandes doutores que nunca exigiram tal titulação, se vestiam com roupas simples, seguiam rotina espartana e nunca compraram na Daslu, mas que contribuíram sobremaneira para a melhoria da sociedade.
O certo é que nós valorizamos mais a forma do que o conteúdo. Odiosa praxe inerente a um país provinciano que incorpora em um mesmo território extremos inexplicáveis. Trafegamos pela Bélgica, quando nos referimos à futilidade e bens de consumo e por Serra Leoa, país africano dos mais miseráveis, quando queremos identificar a pobreza.
Temos que ter consciência que independente do título que se pavoneia, somente o produto do gênio humano é eterno. As bolsas da Daslu não resistirão à primeira festa de emergentes enquanto as sinfonias de Mozart e Beethoven ecoarão pela eternidade.
http://www.conjur.com.br/
Agiu corretamente o juiz sentenciante. O mestre Houaiss, em seu dicionário, ensina que doutor é “aquele que, numa universidade, foi promovido ao mais alto grau depois de haver defendido tese em alguma disciplina literária, artística ou científica”.
Na prática, entretanto, chamamos o juiz, o deputado, o delegado, o promotor, etc., mesmo sem aquela mais alta graduação universitária, de doutor. Por quê?
A lei não confere aos detentores desses cargos públicos a denominação de doutor. A linguagem técnica, recomendável até por uma questão de etiqueta, indicaria chamá-los apenas por senhor seguido da indicação do cargo, ou seja, senhor juiz, senhor deputado e assim por diante.
Semelhante costume atinge aos profissionais da saúde. Chama-se o médico de doutor, mesmo aqueles que não possuem doutorado.
A explicação para a prática em análise é facilmente encontrada. Em um país em que o analfabetismo e a pobreza atingem níveis escandalosos, criou-se o entendimento comum de que, quem consegue concluir um curso superior, qualquer que seja, torna-se doutor.
Com isso, o surgimento desordenado de faculdades privadas — as faculdades de Direito, por exemplo, são quase incontáveis —, às vezes sem o mínimo critério quanto à qualidade do ensino, nos transformará no país dos doutores. Quero deixar claro que não sou contra a democratização do ensino superior, muito pelo contrário, apenas acho que essa democratização deve ter como corolário a produção científica e não a produção de bacharéis e diplomas, com a única finalidade de alimentar a vaidade inerente a natureza humana.
Pior ainda são os doutores do capital, aqueles que ostentam o título pela força da riqueza, mesmo sem nunca terem freqüentado uma faculdade, demonstrando a arrogante supremacia do dinheiro sobre a produção do gênio humano.
Conheci grandes doutores que nunca exigiram tal titulação, se vestiam com roupas simples, seguiam rotina espartana e nunca compraram na Daslu, mas que contribuíram sobremaneira para a melhoria da sociedade.
O certo é que nós valorizamos mais a forma do que o conteúdo. Odiosa praxe inerente a um país provinciano que incorpora em um mesmo território extremos inexplicáveis. Trafegamos pela Bélgica, quando nos referimos à futilidade e bens de consumo e por Serra Leoa, país africano dos mais miseráveis, quando queremos identificar a pobreza.
Temos que ter consciência que independente do título que se pavoneia, somente o produto do gênio humano é eterno. As bolsas da Daslu não resistirão à primeira festa de emergentes enquanto as sinfonias de Mozart e Beethoven ecoarão pela eternidade.
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