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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Banda Boa do Judiciário



Assim como já publiquei artigos dos valorosos juízes Fausto De Sanctis e Marcelo Semmer, estou publicando várias matérias e artigos sobre a exemplar e combativa juíza Patrícia Acioli, brutalmente assassinada com 21 tiros, em agosto último, na porta de sua casa em Niterói, Rio de Janeiro. O ABC! continuará abrindo espaço para a Banda Boa do Judiciário brasileiro, divulgando seu trabalho, suas ideias, sua atuação por um Judiciário moderno, aberto, não-elitista, democrático e cidadão.


Abaixo, artigo da aguerrida Procuradora da República, Janice Ascari, Mestra em Direito, membro do Ministério Público Federal em São Paulo e também blogueira (blog aqui).


Violência contra a mulher


JANICE AGOSTINHO BARRETO ASCARI
Em Os Constitucionalistas

No dia 25/11/1960, três ativistas políticas foram assassinadas e tiveram seus corpos jogados num precipício pela polícia do ditador Rafael Trujillo, na República Dominicana: as irmãs Patria, Minerva e Maria Teresa Mirabal. O ditador dominicano avaliou que esta era a melhor forma de eliminar suas ferrenhas opositoras políticas, mas a crueldade do crime teve efeito contrário e desencadeou uma crise sem precedentes, que culminou no assassinato de Trujillo em março de 1961. Em 1979, a Organização das Nações Unidas adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e, em dezembro de 1999, a resolução 50/134 da ONU oficializou o dia 25 de novembro como o Dia Internacional de Eliminação da Violência contra a Mulher.
Delara Darabi, uma jovem iraniana de apenas 17 anos de idade, confessou ser autora do homicídio de uma prima para proteger o verdadeiro assassino, seu namorado de 19 anos. Foi entregue à polícia por seu próprio pai e, no cárcere, tornou-se desenhista e pintora, o que não evitou uma tentativa de suicídio. Delara retratou-se da confissão logo depois de sua prisão e a negativa de autoria do crime foi confirmada por prova pericial oficial, que atestava impossibilidade técnica de ela ter atingido a vítima, pois os golpes foram proferidos por pessoa destra e Delara era canhota. Inobstante a comovida mobilização mundial em seu favor, incluindo abaixo-assinados pelainternet, os pedidos de clemência e perdão não foram aceitos por Mahmoud Ahmadinejad, chefe de governo do Irã. Em 1º/5/2009, aos 23 anos de idade, a jovem pintora iraniana foi executada por enforcamento. O verdadeiro assassino não sofreu qualquer punição e segue a vida, livre como um pássaro.
A belíssima Waris Dirie nasceu na Somália e aos 5 anos de idade sofreu mutilação genital, num ato de extrema brutalidade e sem qualquer assepsia ou anestesia: o instrumento utilizado foi uma lâmina de barbear enferrujada. Aos 13 anos Waris fugiu de casa pois a familia iria casá-la à força com um homem de 60 anos. Ela atravessou os desertos da Somália à pé, sentiu sede, medo, desespero, fome e acabou colocando-se a salvo como empregada doméstica em Londres. Aos 18, foi descoberta por um fotógrafo e tornou-se uma famosa modelo internacional. Sua biografia, Flor do Deserto, chegou ao cinema depois do enorme sucesso do livro. Atualmente, com 45 anos de idade, Waris Dirie preside a fundação que leva seu nome e é embaixadora especial da ONU para a Eliminação da Mutilação Genital Feminina, proferindo conferências sobre o tema no mundo todo. A mutilação genital, cuja forma mais grave e dolorosa é infibulação, é adotada em 28 países da África e já vitimou mais de 3 milhões de meninas, segundo a Unicef.
Em alguns países de tradição islâmica, que adotam a Sharia como lei penal, como o Irã, Afeganistão, Indonésia, Paquistão, Somália, Nigéria, Sudão e outros, o adultério feminino é punido com a morte por apedrejamento (lapidação ou stoning), para a qual a mulher é previamente enterrada viva até as axilas ou o pescoço, conforme o caso. A execução é deixada a cargo de vizinhos e familiares e torna-se um grande acontecimento. O Código Penal Islâmico do Irã chega a detalhar o tamanho das pedras a ser arremessadas: nem tão grandes a ponto de matar rapidamente, nem tão pequenas que possam prolongar a finalização da punição.
Recentemente, em outubro de 2008, uma menina de apenas 13 anos, Aisha Ibrahim Duhulow, foi condenada à morte por apedrejamento, por ter sido estuprada por três homens. A punição foi executada por 50 homens e assistida por cerca de mil pessoas, num estádio ao sul da Somália. Os estupradores não foram presos nem receberam qualquer tipo de reprimenda.
Em 2009, treze mulheres, incluindo uma jornalista, foram presas no Sudão por estarem vestindo calças compridas, o que contraria as leis muçulmanas. A pena aplicada variou de 20 a 40 chibatadas.
Na Malásia, país que adota o caning (pena corporal, degradante e dolorosa, consistente na aplicação de golpes com pedaços de madeira), dois casos chamaram a atenção mundial:  em julho de 2009, uma mulher muçulmana  foi condenada a receber seis pauladas por ingerir álcool num hotel e, no início de 2010, outras três mulheres também foram condenadas ao caning, por suspeita de praticarem sexo fora do casamento.
Por todo o mundo, a violência contra a mulher é uma das modalidades mais sistemáticas de violação aos direitos humanos. Essa misoginia silenciosa não escolhe classe social, grupo étnico ou faixa etária e aparece sob a forma de violência doméstica, sexual, psicológica e física, incluindo os casos de homicídio, lesões corporais diversas, mutilação genital e diversos tipos de subjugação.
Estima-se que milhares de mulheres tenham sido abusadas, violadas, estupradas, mantidas sob escravização sexual ou brutalmente assassinadas, por militares e paramilitares, durante os conflitos de Ruanda, Bosnia e Herzegovina, Serra Leoa, Congo, Chade, Darfur e tantas outras localidades.
Segundo dados divulgados em relatório de 2009 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC, o tráfico de pessoas (especialmente mulheres, para fins de exploração da prostituição, que constituem 79% do total) já é a terceira economia no mundo do crime, movimentando cerca de 7 a 9 bilhões de dólares ao ano. Desnecessário alertar para o fato de que essas atividades favorecem em grande escala complexos esquemas de lavagem de dinheiro.
O Brasil adota uma forte proteção constitucional aos direitos humanos e garantias individuais, em extenso rol (artigos 5º e 7º da Constituição Federal), assegurando, ao menos no plano formal, a igualdade de gênero e a não-discriminação, inclusive pela orientação sexual. Num mundo predominantemente masculino no qual as mulheres, em muitos países, não têm voz nem direito a um julgamento justo, nosso arcabouço normativo é efetivamente um alento. Falta-nos, contudo, colocá-lo em prática.
A legislação infraconstitucional teve sensível avanço com as alterações introduzidas pela Lei nº 11.106/2005, 11.340/2006 (conhecida como “Lei Maria da Penha”, em homenagem à mulher que a inspirou, vítima da violência doméstica) e 12.015/2009. Até 2005, o adultério era tipificado como crime de ação penal privada, punido com pena de quinze dias a seis meses de detenção.
A Lei 11.106/05 incluiu no Código de Processo Penal a previsão de mais uma hipótese a autorizar a prisão preventiva, se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
O Ministério Público Brasileiro, legítimo defensor da sociedade, da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, 127) tem dado especial atenção a esse peculiar tipo de violência. Promotores e Procuradores de todo o Brasil têm como uma de suas prioridades o combate à violência e a discriminação contra a mulher, nas suas mais variadas formas.
Houve época em que a jurisprudência brasileira, originada de tribunais compostos exclusivamente de homens, chegou a entender, por exemplo, que prostitutas não poderiam ser consideradas como possíveis vítimas de estupro. Graças aos inúmeros recursos interpostos pelo Ministério Público, titular exclusivo da ação penal, o entendimento jurisprudencial evoluiu. Felizmente, vem em escala crescente o número de mulheres nos tribunais e no Ministério Público.
A luta, porém, é contínua. Em fevereiro de 2010, no julgamento de Recurso Repetitivo escolhido como leading case, o Superior Tribunal de Justiça, por maioria, decidiu manter a necessidade de representação da vítima nos casos de lesões corporais de natureza leve decorrentes de violência doméstica, após a vigência da Lei Maria da Penha (REsp 1.097.042). Isso significa que o processo criminal só será iniciado se houver manifestação de vontade expressa da agredida nesse sentido. Como a imensa maioria das mulheres vítimas de violência ou abuso sexual ou psicológico termina por calar a respeito por puro medo, pois quase 80% dos agressores com elas coabitam ou são familiares próximos, a decisão do STJ, se não for revista e reformada, estimulará o silêncio das vítimas e a consequente impunidade dos transgressores.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) tem se debruçado sobre a questão da violência contra a mulher, biológica ou socialmente considerada, com atenção, também, aos direitos sexuais e reprodutivos e aos direitos de travestis e transexuais, incluindo o processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Outra iniciativa que merece registro é o projeto “Promotoras Legais Populares”, que reúne membros do Ministério Público e da advocacia para o fim de orientar, dar conselhos e promover a função instrumental do Direito no cotidiano das mulheres.
Cabe à sociedade contemporânea estimular mudanças de comportamento e de mentalidade, promovendo a cultura e a educação para o respeito à mulher, evitando o estabelecimento de um padrão negativo de estereótipos femininos. A propósito, vale conferir o documentário Killing us softly (“Matando-nos suavemente”), de Jean Kilbourne, que mostra como a publicidade moderna pode induzir e estimular a violência contra a mulher.
Ao Estado incumbe a implementação e a concretização de políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher e de combate a toda e qualquer violação aos direitos humanos civis.
Ao Ministério Público, instituição à qual a lei maior outorgou prerrogativas exatamente para instrumentalizar e conferir maior eficácia à função, cabe fazer exigir do poder público, dos prestadores de serviço de relevância pública e também dos  particulares o efetivo respeito aos direitos assegurados na Constituição Federal, que incluem os direitos humanos. O Ministério Público cumpre o importante papel de agente de promoção da cidadania, proteção da sociedade plural e harmonização de interesses diversos, atuando não só nas questões criminais mas também na defesa judicial e extrajudicial da ordem jurídica e dos direitos e garantias individuais indisponíveis.
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JANICE AGOSTINHO BARRETO ASCARI é procuradora regional da República e ex-conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público.
Referências bibliográficas:
Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos: 10 anos do estatuto dos Refugiados (Lei n. 9474 de 22 de julho de 1997) / João Carlos de Carvalho Rocha, Tarcisio Humberto Parreiras Henriques Filho, Ubiratan Cazetta (Coordenadores) – Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
Ministério Público: reflexão sobre princípios e funções institucionais / Carlos Vinicius Alves Ribeiro (Organizador) – São Paulo: Atlas, 2010.
Anistia Internacional:
Global Report on Trafficking In Persons, February 2009, UNDOC – United Nations Office on Drugs and Crime,
Organização das Nações Unidas:
Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/48/104 e
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher,http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/text/econvention.htm, ambos acessos em 25 de fevereiro de 2010.
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/


Os Constitucionalistas


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Dilma na ONU: endureceu, mas sem perder a ternura



Abaixo, uma análise do discurso histórico da presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher a abrir a Assembleia Geral das Nações Unidas, ontem, em Nova York.


Bordoadas com bandeira feminina



A presidenta Dilma Rousseff, durante discurso da Assembleia Geral da ONU. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Dezesseis das 2.301 palavras usadas pela presidenta Dilma Rousseff em seu discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, na manhã desta quarta-feira, eram referências diretas ao gênero feminino.
Em sua fala, Dilma não deixou passar batido o fato de ter se tornado, no momento em que subiu à tribuna, a primeira mulher a abrir o Debate Geral da ONU, papel que tradicionalmente cabe ao Brasil. “Pela primeira vez, na história das Nações Unidas, uma voz feminina inaugura o Debate Geral. É a voz da democracia e da igualdade se ampliando nesta tribuna que tem o compromisso de ser a mais representativa do mundo”, afirmou Dilma, logo na abertura de sua fala. A presidenta se disse “humilde”, mas com “justificado orgulho” pelo que classificou como momento histórico. E recebeu aplausos dos líderes mundiais.
“Divido esta emoção com mais da metade dos seres humanos deste Planeta, que, como eu, nasceram mulher”, acrescentou, antes de dizer que este será o “século das mulheres”.
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Não eram apenas formalidades. Antes de entrar em assuntos considerados mais delicados,  Dilma jogou flores à plateia onde se reuniam os chefes de Estado: lembrou que, na língua portuguesa, as palavras  “alma”, “esperança”, “coragem” e “sinceridade”  pertencem ao gênero feminino. Com estas últimas, cavou sua trincheira para emendar o recado para os líderes mundiais: “Pois é com coragem e sinceridade que quero lhes falar no dia de hoje”.
Foi quando Dilma deixou de lado as flores e as luvas de pelica e acertou com os dois pés o peito de parte da plateia que a assistia: os países ricos, que segundo ela querem encontrar sozinhos uma saída para a crise que eles mesmos inventaram; a China (que não foi citada), pelo desequilíbrio financeiro patrocinado pela guerra cambial; os ditadores árabes que reprimem manifestações populares em busca de democracia; Israel, este citado com todas as letras, por não compreender que apenas uma Palestina “livre e soberana” poderá estender a “estabilidade política em seu entorno”; e a própria cúpula das Nações Unidas, reivindicando novamente um assento no Conselho de Segurança do órgão. Era o que se esperava dela, que manteve o tom firme, menos emotivo que em outras falas. Se faltaram lágrimas, sobraram aplausos dos colegas que a assistiam.

A presidenta Dilma Rousseff durante abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Ao falar da crise financeira mundial, a presidenta emendou. “Nós, mulheres, sabemos, mais que ninguém, que o desemprego não é apenas uma estatística. Golpeia as famílias, nossos filhos e nossos maridos. Tira a esperança e deixa a violência e a dor”.
Dilma voltaria a conclamar “as mulheres de todo mundo” ao falar sobre as políticas de inclusão de seu governo. Porque, no Brasil, “a mulher tem sido fundamental na superação das desigualdades sociais”. “Nossos programas de distribuição de renda têm nas mães a figura central. São elas que cuidam dos recursos que permitem às famílias investir na saúde e na educação de seus filhos”, completou.
No discurso, houve tempo ainda de felicitar o secretário-geral Ban Ki-Moon “pela prioridade que tem conferido às mulheres em sua gestão à frente das Nações Unidas”. Foi o gancho para saudar a criação da ONU Mulher e sua diretora-executiva, a ex-presidenta do Chile Michelle Bachelet.
Dilma citou ainda “as mulheres anônimas, aquelas que passam fome e não podem dar de comer aos seus filhos; aquelas que padecem de doenças e não podem se tratar; aquelas que sofrem violência e são discriminadas no emprego, na sociedade e na vida familiar; aquelas cujo trabalho no lar cria as gerações futuras”.
E arrematou: “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”.
Como esperado, lembrou o período em que foi torturada na prisão, durante o regime militar, período em que, segundo a presidenta, aprendeu, como mulher – frisou – a valorizar “a democracia, a justiça, os direitos humanos e a liberdade”.
Foi, talvez, a mais esvaziada das suas colocações – já que, na viagem para Nova York, não conseguiu levar na bagagem um argumento sólido para dizer que, com uma Comissão da Verdade de fato, o Brasil já não compactua com seu passado de repressão.