A propósito da criação de uma Comissão da Verdade pelo Congresso, pedido feito no discurso de posse da ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e das declarações infelizes do general ministro do GSI, chamado pela Presidenta Dilma a esclarecer suas afirmações, reproduzo abaixo artigo do jornalista Eric Nepomuceno, publicado agora à tarde no site da CartaCapital.
O direito à memória: uma lei discutível, palavras que envergonham
Por Eric Nepomuceno*
Em meados de dezembro, faltando duas semanas para o final do governo Lula, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Brasil por não haver punido os responsáveis pelas prisões, torturas, mortes e desaparições de 62 membros do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia, entre 1972 e 1974. Naquele período foram mobilizados cerca de cinco mil soldados (entre eles, unidades de elite do Exército) para derrotar pouco mais de 80 guerrilheiros. A sentença da OEA se estende por 126 páginas, e afirma de maneira inequívoca que as disposições da Lei de Anistia decretada em 1979 não podem impedir as investigações e as sanções a essas graves violações dos direitos humanos. Diz que se trata de disposições que são “incompatíveis com a Convenção da OEA, carecem de efeitos jurídicos e não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos, nem para a identificação e punição dos responsáveis”.
Dito em outras palavras, de maneira direta: a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA fez o que o Supremo Tribunal Federal brasileiro deixou de fazer. E o que o governo de Lula (com exceções como seu ministro de Justiça, Tarso Genro, e o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi) não quis ou não teve peito de levar adiante: dizer que a Lei de Anistia de 1979, quando o país ainda vivia debaixo dos rigores de uma ditadura encastelada no poder, é espúria e inconstitucional. Lula tampouco se animou a instalar a Comissão da Verdade, que levaria – levará? – a que se saiba quem fez o quê, e o que foi feito, e como foi feito, para que nunca mais ocorra o que ocorreu. Não para punir ninguém, que não é preciso chegar a tanto: só para que se recupere o direito à memória.
Lula deixou essa mancha em seu governo, apesar dos esforços de Genro e Vanucchi. E deixou também, na herança entregue a Dilma Rousseff, a presença incômoda, bizarra e poderosa do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que se mostrou absolutamente submisso aos quartéis. Foi, no governo de Lula, o principal aríete dos setores mais retrógrados da Igreja, das Forças Armadas, dos meios de comunicação e da sociedade. Defendeu a todo custo que a anistia imposta pela ditadura em 1979 – a única possível na época – efetivamente alcançou os dois lados. Aos que se opuseram a essa ditadura e aos que exerceram a barbárie em nome do Estado. Vale recordar que os opositores foram punidos com perseguição, exílio, prisão, tortura, morte, desaparição. Os assassinos e torturadores perambulam por aí com a certeza de que jamais serão punidos.
O tema não é novo, e há pelo menos uma década e meia é tratado com uma cautela tão extrema que mais justo seria chamá-la de temor. O governo de Fernando Henrique Cardoso bem que avançou bastante, mas com muita prudência, reconhecendo excessos do Estados, uma entidade sem rosto nem nome. Lula poderia ter avançado muito mais por essa trilha. Bem que quis levar adiante o Plano Nacional de Direitos Humanos, iniciado pelo seu antecessor. Tropeçou com o poder do medo, e ficou por aí.
No ano passado, a Ordem dos Advogados defendeu a tese de que a lei de anistia não incluía torturadores e assassinos. A iniciativa foi fulminada pelo Supremo Tribunal Federal. Argumento escuso da corte suprema: não era admissível revisar a Lei de Anistia. Acontece que ninguém queria revisar nada: tratava-se apenas de decidir se a Lei era ou não aplicável aos responsáveis por crimes de lesa humanidade, que são imprescritíveis à luz do direito. Uma infinidade de acordos internacionais firmados pelo Brasil dizem claramente que não há anistia para quem cometeu essa classe de crime.
Quando ministro da Justiça, Tarso Genro chegou a defender um argumento insólito: os torturadores e violadores agiram fora da lei da própria ditadura, uma vez que não existiam ordens formais de serviço ou qualquer norma legal que permitissem a tortura, a execução sumária ou o sequestro e desaparição de pessoas que se encontravam sob a tutela do Estado. Foi em vão: no Brasil persiste o temor esdrúxulo às casernas, que dizem que o que importa é olhar para a frente, e que não há que se perder tempo olhando o passado. Como se uma coisa impedisse a outra.
Maria do Rosário, substituta de Paulo Vanucchi na secretaria de Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff, pediu, em seu discurso de posse, que o Congresso crie uma Comissão da Verdade para que se saiba o que ocorreu nos porões da ditadura e que seus responsáveis sejam conhecidos. Não falou em punição. Assegurou que não se trata de revanchismo ou vingança, mas do direito à memória e à verdade. Do direito dos familiares de mortos e desaparecidos enfim saberem o que aconteceu com eles, e como aconteceu.
Num instante veio a resposta do general José Elito Siqueira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional: é preciso olhar para a frente, o que passou, passou. É história. Se houve desaparecidos, não há por quê sentir vergonha ou se vangloriar.
Aos seus 64 anos, o general é da turma de 1969 do Exército, quando a tortura corria solta no Brasil. Ele tinha 23 anos. É um pouco mais velho que eu. E, sendo quase da mesma idade, posso admitir que ele não soubesse o que acontecia. Que não tenha participado de nada. Mas não é fácil admitir que não saiba, agora, o peso de suas palavras.
Não, general: é, sim, uma tremenda vergonha que tenham acontecido desaparições. E outra vergonha é dizer o que o senhor disse. Ao dizê-lo, o senhor ofende a minha memória, ofende a farda que veste. Uma vergonha, general. Uma vergonha. Oxalá tudo não tenha passado de um mal-entendido, apesar da clareza de suas palavras.
*Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Texto publicado originalmente no Página/12
Em meados de dezembro, faltando duas semanas para o final do governo Lula, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Brasil por não haver punido os responsáveis pelas prisões, torturas, mortes e desaparições de 62 membros do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia, entre 1972 e 1974. Naquele período foram mobilizados cerca de cinco mil soldados (entre eles, unidades de elite do Exército) para derrotar pouco mais de 80 guerrilheiros. A sentença da OEA se estende por 126 páginas, e afirma de maneira inequívoca que as disposições da Lei de Anistia decretada em 1979 não podem impedir as investigações e as sanções a essas graves violações dos direitos humanos. Diz que se trata de disposições que são “incompatíveis com a Convenção da OEA, carecem de efeitos jurídicos e não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos, nem para a identificação e punição dos responsáveis”.
Dito em outras palavras, de maneira direta: a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA fez o que o Supremo Tribunal Federal brasileiro deixou de fazer. E o que o governo de Lula (com exceções como seu ministro de Justiça, Tarso Genro, e o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi) não quis ou não teve peito de levar adiante: dizer que a Lei de Anistia de 1979, quando o país ainda vivia debaixo dos rigores de uma ditadura encastelada no poder, é espúria e inconstitucional. Lula tampouco se animou a instalar a Comissão da Verdade, que levaria – levará? – a que se saiba quem fez o quê, e o que foi feito, e como foi feito, para que nunca mais ocorra o que ocorreu. Não para punir ninguém, que não é preciso chegar a tanto: só para que se recupere o direito à memória.
Lula deixou essa mancha em seu governo, apesar dos esforços de Genro e Vanucchi. E deixou também, na herança entregue a Dilma Rousseff, a presença incômoda, bizarra e poderosa do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que se mostrou absolutamente submisso aos quartéis. Foi, no governo de Lula, o principal aríete dos setores mais retrógrados da Igreja, das Forças Armadas, dos meios de comunicação e da sociedade. Defendeu a todo custo que a anistia imposta pela ditadura em 1979 – a única possível na época – efetivamente alcançou os dois lados. Aos que se opuseram a essa ditadura e aos que exerceram a barbárie em nome do Estado. Vale recordar que os opositores foram punidos com perseguição, exílio, prisão, tortura, morte, desaparição. Os assassinos e torturadores perambulam por aí com a certeza de que jamais serão punidos.
O tema não é novo, e há pelo menos uma década e meia é tratado com uma cautela tão extrema que mais justo seria chamá-la de temor. O governo de Fernando Henrique Cardoso bem que avançou bastante, mas com muita prudência, reconhecendo excessos do Estados, uma entidade sem rosto nem nome. Lula poderia ter avançado muito mais por essa trilha. Bem que quis levar adiante o Plano Nacional de Direitos Humanos, iniciado pelo seu antecessor. Tropeçou com o poder do medo, e ficou por aí.
No ano passado, a Ordem dos Advogados defendeu a tese de que a lei de anistia não incluía torturadores e assassinos. A iniciativa foi fulminada pelo Supremo Tribunal Federal. Argumento escuso da corte suprema: não era admissível revisar a Lei de Anistia. Acontece que ninguém queria revisar nada: tratava-se apenas de decidir se a Lei era ou não aplicável aos responsáveis por crimes de lesa humanidade, que são imprescritíveis à luz do direito. Uma infinidade de acordos internacionais firmados pelo Brasil dizem claramente que não há anistia para quem cometeu essa classe de crime.
Quando ministro da Justiça, Tarso Genro chegou a defender um argumento insólito: os torturadores e violadores agiram fora da lei da própria ditadura, uma vez que não existiam ordens formais de serviço ou qualquer norma legal que permitissem a tortura, a execução sumária ou o sequestro e desaparição de pessoas que se encontravam sob a tutela do Estado. Foi em vão: no Brasil persiste o temor esdrúxulo às casernas, que dizem que o que importa é olhar para a frente, e que não há que se perder tempo olhando o passado. Como se uma coisa impedisse a outra.
Maria do Rosário, substituta de Paulo Vanucchi na secretaria de Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff, pediu, em seu discurso de posse, que o Congresso crie uma Comissão da Verdade para que se saiba o que ocorreu nos porões da ditadura e que seus responsáveis sejam conhecidos. Não falou em punição. Assegurou que não se trata de revanchismo ou vingança, mas do direito à memória e à verdade. Do direito dos familiares de mortos e desaparecidos enfim saberem o que aconteceu com eles, e como aconteceu.
Num instante veio a resposta do general José Elito Siqueira, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional: é preciso olhar para a frente, o que passou, passou. É história. Se houve desaparecidos, não há por quê sentir vergonha ou se vangloriar.
Aos seus 64 anos, o general é da turma de 1969 do Exército, quando a tortura corria solta no Brasil. Ele tinha 23 anos. É um pouco mais velho que eu. E, sendo quase da mesma idade, posso admitir que ele não soubesse o que acontecia. Que não tenha participado de nada. Mas não é fácil admitir que não saiba, agora, o peso de suas palavras.
Não, general: é, sim, uma tremenda vergonha que tenham acontecido desaparições. E outra vergonha é dizer o que o senhor disse. Ao dizê-lo, o senhor ofende a minha memória, ofende a farda que veste. Uma vergonha, general. Uma vergonha. Oxalá tudo não tenha passado de um mal-entendido, apesar da clareza de suas palavras.
*Eric Nepomuceno é jornalista e escritor. Texto publicado originalmente no Página/12