"Maria da Paz" assistiu estarrecida a uma execução sumária feita por PMs em cemitério de município da Grande São Paulo, pegou o celular na hora, ligou para o 190 e denunciou o crime.
E não ficou nisso. Minutos depois, abordada pelos policiais assassinos, que inclusive queriam "levá-la para a delegacia" (já imaginaram o que seria feito de "Maria da Paz" no trajeto para a delegacia?!...), enfrentou os facínoras e ainda deu-lhes uma descompostura.
Quantos de nós teriam o sangue frio e a coragem de fazer isso, ainda mais com bandidagem fardada e armada?
Brava Gente Brasileira!
Mulher presencia execução feita por PMs e faz denúncia ao 190 em tempo real
Policiais fizeram BO dizendo que vítima resistiu à prisão, por isso foi morta; testemunha está sob proteção policial
04 de abril de 2011
Bruno Paes Manso - O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Uma ligação para o telefone 190 do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) em março deste ano mostra uma execução em tempo real. A testemunha permanece sob proteção policial. Ela ligou para a PM e descreveu o crime, que foi gravado.
Em seguida, o policial autor da execução percebeu a presença da testemunha, parou a viatura e foi em direção a ela. Corajosa, a mulher se antecipou e foi falar com o policial. "Tem um PM vindo na nossa direção. Oi, desculpa, senhor, o senhor que estava naquela viatura? O senhor que acertou o disparo ali? Foi o senhor que tirou a pessoa de dentro? Estava próximo de onde estávamos. Eu estou falando com a Polícia Militar".
Ainda durante a ligação, o policial fala à testemunha que estava socorrendo a vítima, conversa que também foi gravada. E tenta levar a testemunha para a delegacia. "Estava socorrendo? Meu senhor, olhe bem para a minha cara. Eu não vou (para a delegacia). Ele falou que estava socorrendo. É mentira. É mentira, senhor. É mentira. Eu não quero conversar com o senhor. E o senhor tem a consciência do que o senhor faz".
Os policiais militares acusados de execução registram um boletim de ocorrência de roubo seguido de resistência e morte. Alegavam que o homem morto havia resistido à prisão. Mas a iniciativa da testemunha fez a versão dos policiais cair por terra. Dois PMs estão presos no Romão Gomes.
A Polícia Militar manteve o caso sob sigilo para preservar as testemunhas.
(destaques meus)
Tributo a uma mulher desconhecida
Edmundo Leite
Não sei o nome nem quem é a protagonista da denúncia estarrecedora registrada pelo 190 da Polícia Militar, e noticiada pelo Estadão. Seja quem for essa mulher, qual for sua história de vida, entrou para um panteão em que poucos teriam lugar.
Seu gesto de coragem ao celular e na frente do policial assassino é um editorial pronto, um libelo contra a injustiça e a violência, um “Eu acuso” de Zola dos tempos modernos. Com uma simples ligação telefônica, rompeu uma eterna lei do silêncio que costuma imperar em casos semelhantes: “Diz que já é normal fazer isso aqui, mas não é normal eu assistir isso…”
Não é normal eu assistir isso… Fora a dignidade de não aceitar a violência como coisa normal e de denunciar um crime covarde cometido por quem deveria combatê-los no momento em que a barbárie era cometida, há a coragem indignada de contestar a versão estapafúrdia que o policial quis apresentar ao se perceber flagrado por essa mulher desconhecida. “… Não, não. Eu estava socorrendo o rapaz. Socorrendo? Meu senhor, olha bem pra minha cara.”
Claro que já não falta – inclusive em mensagens aqui no Estadão – gente dizendo que a polícia está certa em matar bandido mesmo infringindo a lei. Não está. A mulher desconhecida lembrou isso aos policiais e à sociedade. Lembrou que não podemos aceitar o crime, sobretudo de quem deve combater o crime.
Em muitos lugares do mundo existem monumentos ao soldado desconhecido, em homenagem à bravura dos anônimos que lutaram por uma causa que talvez nem soubessem direito qual era. Um monumento a essa mulher desconhecida deveria ser erguido na Zona Leste de São Paulo. Espero que não num cemitério.
Estadão
Werther Santana/AE
Cemitério onde ocorreu o crime em março
"Olha, eu estou no Cemitério das Palmeiras, em Ferraz de Vasconcelos e a Polícia Militar acabou de entrar com uma viatura aqui dentro do cemitério, com uma pessoa dentro do carro, tirou essa pessoa do carro e deu um tiro. Eu estou aqui do lado da sepultura do meu pai."
De onde presenciou o assassinato, a denunciante não conseguia ver a placa nem o prefixo da viatura policial. Enquanto falava com o Copom, ela teve sangue frio para esperar os policiais fecharem a viatura e passar em frente dela para que ela relatasse os dados ao Copom. "Espera só um pouquinho porque eles vão passar por mim agora. Espero que não me matem também. A placa é DJM 0451, o prefixo é 29.411, M 29.411."Em seguida, o policial autor da execução percebeu a presença da testemunha, parou a viatura e foi em direção a ela. Corajosa, a mulher se antecipou e foi falar com o policial. "Tem um PM vindo na nossa direção. Oi, desculpa, senhor, o senhor que estava naquela viatura? O senhor que acertou o disparo ali? Foi o senhor que tirou a pessoa de dentro? Estava próximo de onde estávamos. Eu estou falando com a Polícia Militar".
Ainda durante a ligação, o policial fala à testemunha que estava socorrendo a vítima, conversa que também foi gravada. E tenta levar a testemunha para a delegacia. "Estava socorrendo? Meu senhor, olhe bem para a minha cara. Eu não vou (para a delegacia). Ele falou que estava socorrendo. É mentira. É mentira, senhor. É mentira. Eu não quero conversar com o senhor. E o senhor tem a consciência do que o senhor faz".
Os policiais militares acusados de execução registram um boletim de ocorrência de roubo seguido de resistência e morte. Alegavam que o homem morto havia resistido à prisão. Mas a iniciativa da testemunha fez a versão dos policiais cair por terra. Dois PMs estão presos no Romão Gomes.
A Polícia Militar manteve o caso sob sigilo para preservar as testemunhas.
(destaques meus)
Tributo a uma mulher desconhecida
Edmundo Leite
Não sei o nome nem quem é a protagonista da denúncia estarrecedora registrada pelo 190 da Polícia Militar, e noticiada pelo Estadão. Seja quem for essa mulher, qual for sua história de vida, entrou para um panteão em que poucos teriam lugar.
Seu gesto de coragem ao celular e na frente do policial assassino é um editorial pronto, um libelo contra a injustiça e a violência, um “Eu acuso” de Zola dos tempos modernos. Com uma simples ligação telefônica, rompeu uma eterna lei do silêncio que costuma imperar em casos semelhantes: “Diz que já é normal fazer isso aqui, mas não é normal eu assistir isso…”
Não é normal eu assistir isso… Fora a dignidade de não aceitar a violência como coisa normal e de denunciar um crime covarde cometido por quem deveria combatê-los no momento em que a barbárie era cometida, há a coragem indignada de contestar a versão estapafúrdia que o policial quis apresentar ao se perceber flagrado por essa mulher desconhecida. “… Não, não. Eu estava socorrendo o rapaz. Socorrendo? Meu senhor, olha bem pra minha cara.”
Claro que já não falta – inclusive em mensagens aqui no Estadão – gente dizendo que a polícia está certa em matar bandido mesmo infringindo a lei. Não está. A mulher desconhecida lembrou isso aos policiais e à sociedade. Lembrou que não podemos aceitar o crime, sobretudo de quem deve combater o crime.
Em muitos lugares do mundo existem monumentos ao soldado desconhecido, em homenagem à bravura dos anônimos que lutaram por uma causa que talvez nem soubessem direito qual era. Um monumento a essa mulher desconhecida deveria ser erguido na Zona Leste de São Paulo. Espero que não num cemitério.
Estadão