Consolidar herança de Lula é primeira tarefa de Dilma
Marcelo Semer
De São Paulo/Portal Terra
De São Paulo/Portal Terra
Noite de vinte e cinco de dezembro, na avenida Paulista.
A decoração de Natal do centro empresarial pára o trânsito da capital. Quem quer visitar nossa Quinta Avenida faz filas homéricas. Quem quer apenas passar pela artéria viária se desespera, desliga o motor e desce do carro.
Quem vê trânsito, não vê coração.
Muito mais do que as centenas de automóveis andando lentamente na avenida, o que surpreende são as milhares de famílias que as estações do Metrô desovam a cada cinco minutos. Repletas de crianças e de máquinas fotográficas, elas registram incessantemente os papais-noéis e as árvores estilizadas nas pequenas luzes dos imóveis comerciais.
A invasão incomoda, principalmente, a quem não está de passeio. Mas não deixa de ser inusitado, e por isso emocionante, perceber a forma curiosa e ao mesmo tempo carinhosa, como o paulistano mais simples apreende as belezas de sua cidade, sendo cada vez menos estrangeiro nela.
Esta ocupação de espaço por novos personagens vem se repetindo em outros tantos lugares, que até então funcionavam como ambientes privativos.
Decoração natalina da Avenida Paulista (foto: Eduardo Andreassi/vc repórter)
Filas de táxi de mais de uma hora nos aeroportos comprovam que o "caos aéreo" não se limita à desorganização das companhias ou a leniência das agências reguladoras.
As cidades não estão preparadas para serem usufruídas por um percentual tão elevado de seus habitantes. Parece que foram feitas para poucos.
Com a ascensão da classe C a um paraíso antes restrito à classe média mais endinheirada, os serviços se mostram precários e os atrasos nos perturbam.
O fruto da ascensão social é, disparado, a melhor herança bendita dos oito anos do governo Lula. Vitaminou o forte crescimento do país depois da crise mundial, inflou balanços das indústrias e aumentou o nível de emprego.
Exibiu, para todos, o enorme mercado interno consumidor de que os economistas sempre nos falavam, quando expunham a tese do "país do futuro".
Mas as reações a essa aproximação das classes mais baixas também se tornam vigorosas, como o preconceito contra os nordestinos que tomou conta de São Paulo nos dias que sucederam a eleição.
A classe média reage como se estivessem invadindo sua praia.
Em Santa Catarina, o jornalista Luiz Carlos Prates, da RBS, atribui a violência no trânsito aos "miseráveis" que estão comprando carros, "mesmo sem nunca terem lido um livro".
O filósofo Luiz Felipe Pondé reproduz, na Folha de S. Paulo, o pensamento de quem se indigna com o fim dos pequenos privilégios: "Detesto aeroportos e classes sociais recém-chegadas a aeroportos, com sua alegria de praça de alimentação".
Manter a capacidade de reduzir a pobreza, lidar com as enormes expectativas decorrentes da ascensão social e combater o preconceito que se instala em razão dela, são algumas das difíceis tarefas do governo Dilma.
Torçamos para que ela não perca, como Lula perdeu, tanto tempo para afirmar sua política.
Nunca é demais lembrar que, nos primeiros anos, o petista se comportou como um legítimo convertido ao mercado, fazendo jura aos contratos e se pautando pelas reformas da globalização.
Vestia-se bem e troçava das palavras de ordem de sua época na militância sindical, enquanto continuava a política econômica de FHC.
Mas a crise do mensalão, paradoxalmente, salvou Lula e com ele o país. Rompido com a imprensa e, por tabela, com a classe média, Lula deu uma guinada à esquerda em seu governo. Abriu mão da ortodoxia e desistiu do arrocho. Concedeu seguidos aumentos reais ao salário mínimo e aposentadorias e fortaleceu os programas de transferência de renda e auxílio ao crédito.
Por ousadia ou cálculo, convicção ou apuro, Lula 2.0 assumiu seu lugar na história e, verdade seja dita, ninguém ficou tão confortável lá quanto ele.
Os críticos têm razão quando refutam a megalomania de Lula. Ele não inventou o país. Mas ao mostrar que o tamanho do possível era bem maior do que os políticos costumavam nos dizer, certamente o reinventou.
Mas ainda há muito para Dilma.
O governo Lula não se livrou do fisiologismo. Foi omisso nas questões de direitos humanos mundo afora, privilegiando duvidosos interesses geopolíticos. E em relação aos crimes da ditadura, optou pelo conforto da posição do ministro dos militares.
Dilma chega ao poder com legitimidade suficiente para tocar em questões delicadas como essas e outras que fizeram parte de seu programa.
Lula perdeu quase três anos tentando ser o que não era, até achar o papel que a política lhe reservava na vida do país.
Que Dilma não desperdice tanto tempo.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.