Direitos Humanos é um tema muito caro à presidenta Dilma, como ficou claro em vários de seus pronunciamentos desde a posse, e até antes. Por sua história de vida e de luta contra a opressão, a intolerância, o arbítrio, o que a levou a ser perseguida, presa e seviciada ainda muito jovem, no início dos anos 70.
No plano internacional, em entrevista ao jornal americano Washington Post, no início de dezembro último, Dilma se mostrou sensível, inclusive, à situação da iraniana Sakineh Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento, apenamento que vem gerando manifestações de protesto e repúdio no mundo todo já há muitos meses.
A presidenta Dilma certamente terá nos Direitos Humanos um foco importante do seu governo, mas é claro que o Brasil não poderá se tornar uma espécie de agência internacional de certificação da situação dos DHs no mundo, como afirmou o assessor especial da Presidência ministro Marco Aurélio Garcia dias atrás.
A presidenta não compactuará com violações de direito e sempre manifestará seu ponto de vista, desde que isso não implique intervenção em assuntos internos de qualquer país e não venha provocar conflitos na política externa brasileira.
Por outro lado, é animador perceber que a presidenta Dilma é vista como "companheira de luta" por perseguidos e injustiçados e por defensores de direitos humanos no mundo todo, como mostram o encontro de Dilma com as Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, e as cartas que a presidenta vem recebendo de lideranças iranianas, por exemplo, como a que publicamos abaixo.
Na carta, a advogada e Prêmio Nobel iraniana Shirin Ebadi cumprimenta Dilma pela vitória nas eleições, se solidariza pelas vítimas nas catástrofes provocadas pelas chuvas na região serrana do Rio de Janeiro, e informa a presidenta Dilma da existência de "leis antimulheres" e de outras vítimas de violações de direito no Irã, além de Sakineh. A advogada chama também a atenção da presidenta para outras penas bárbaras no Irã além do apedrejamento, como amputação de membros, açoitamento e, pasmem, crucificação!
31 de janeiro de 2011
Estimada sra. Dilma Rousseff,
Respeitada Presidente do Brasil,
Como uma iraniana advogada dos direitos humanos e Prêmio Nobel da Paz, eu estou muito feliz em vê-la se tornando a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Essa é uma razão de grande alegria e eu a cumprimento e a todas as mulheres pela vitória. Ao mesmo tempo, estou entristecida pela grande perda de vidas de seus compatriotas durante as enchentes recentes; por favor aceite minha profunda solidariedade.
Estimada sra. Presidente,
O seu país é membro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e participará nessa qualidade da sessão do organismo em março próximo. Devido a numerosos pedidos feitos a mim por um grande número de iranianos, eu considerei necessário informá-la da situação legal das mulheres em meu país.
O Irã é um país de 75 milhões de pessoas, metade das quais são mulheres. As mulheres iranianas são instruídas e bem sucedidas, de tal modo que 60% dos estudantes universitários são mulheres. Há cerca de 50 anos, as mulheres iranianas ganharam seu direito de voto e têm sido eleitas para o Parlamento. As mulheres iranianas têm presença ativa em todas os níveis das instituições administrativas e sociais.
Infelizmente, apesar das conquistas sociais e culturais das mulheres, desde a Revolução de 1979 foram adotadas leis discriminatórias de gênero que sofrem a veemente oposição das mulheres iranianas e têm sido causa de grande preocupação para elas.
Eu gostaria de trazer brevemente a sua atenção algumas dessas leis antimulheres:
Segundo o Código Penal Islâmico, a vida de uma mulher vale metade da de um homem. Isso significa que, se homens e mulheres forem vítimas de ferimentos similares ou morreram devido a um ato criminoso, a compensação paga aos homens é o dobro da paga às mulheres e seus herdeiros (em caso de morte).
De acordo com o mesmo Código, o testemunho de uma mulher num tribunal vale metade do de um homem.
Segundo a Lei de Família, um homem pode ter quatro mulheres e divorciar-se de qualquer uma delas sem nenhuma causa. Mas obter o divórcio é extremamente difícil para as mulheres e algumas vezes impossível.
De acordo com o Código Civil, o marido é o chefe da família. Uma mulher casada que deseja obter um passaporte ou viajar deve primeiro obter um consentimento escrito do marido.
Estimada sra. Presidente,
As mulheres iranianas saúdam sua oposição ao apedrejamento de uma de suas compatriotas, Sakineh. Tristemente tenho que informá-la que não é apenas Sakineh, mas, segundo informes que eu recebi, há atualmente mais de dez mulheres e homens em prisões iranianas esperando essa punição.
Depois da Revolução de 1979, não apenas o apedrejamento foi introduzido no Código Penal do país, mas também punições como as amputações de membros, crucificação e açoitamento, que foram adotadas e aplicadas.
Segundo o Código Penal Islâmico, a idade de responsabilidade criminal para as meninas é de 9 anos e para os meninos de 15 anos. Desse modo, se uma pessoa de 10 anos comete um crime, a lei trata e pune o acusado do sexo feminino de modo similar a um acusado de 40 anos. Devido a essa lei, pessoas que cometem um crime quando têm menos de 18 anos são executadas regularmente. O Irã executa mais acusados menores de idade do que qualquer outro país do mundo.
A lei iraniana prescreve a pena de morte para 37 crimes, incluindo consumir bebidas alcoólicas, o que é punido com 80 chibatadas nas três primeiras ocorrências, e depois com a pena de morte depois da quarta ocorrência.
Nos últimos dois meses, mais de 400 pessoas foram executadas no Irã, algumas delas sob acusações políticas, incluindo uma mulher chamada Shirin Alam Holi. O Irã executa mais pessoas, numa proporção per capita, do que qualquer outro país.
Estimada sra. Presidente,
Enquanto a sra. lê esta carta, 40 jornalistas e blogueiros estão cumprindo extensas penas de prisão e penando nas prisões iranianas. O Irã se tornou a maior prisão para jornalistas. Alguns advogados foram encarcerados apenas por representarem seus clientes e apresentarem a defesa durante julgamentos. Um deles é Nasrin Sotoudeh, um proeminente e conhecido defensor dos direitos humanos que está preso desde 4 de novembro de 2010. Uma corte inferior o sentenciou a 11 anos de prisão e a 20 anos de proibição da prática da advocacia e de viagens ao exterior.
Estimada sra. Presidente,
É um fato triste que a situação dos direitos humanos no Irã é muito pior do que o que pode ser descrito em poucas páginas. Eu estou agradecida pelo Brasil ter se abstido de um voto em uma resolução sobre a situação dos direitos humanos no Irã na Assembleia Geral da ONU em Nova York em dezembro de 2010. Com sua eleição à Presidência, as mulheres iranianas esperam mais atenção à sua situação e têm a esperança de que o seu governo apoiará resoluções sobre a crise dos direitos humanos no Irã votando "Sim" no Conselho de Direitos Humanos e na Assembleia Geral. Isso sem dúvida demonstrará o compromisso de seu governo com os padrões de direitos humanos e além disso com a liberdade e a democracia.
Sinceramente,
Shirin Ebadi
Defensora de Direitos Humanos e Prêmio Nobel da Paz de 2003
Folha Online
31.01.11