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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Doutor de verdade é quem faz doutorado

Sobre "doutor de verdade" e "doutor de mentira", subalternidade e megalomania, uso e abuso do tratamento "doutor"... postamos mais um texto abaixo, desta vez de um jurista, membro do MPU, mestre e doutor em direito.


Doutor de verdade é quem faz doutorado

Marco Antônio Ribeiro Tura*

No momento em que nós do Ministério Público da União nos preparamos para atuar contra diversas instituições de ensino superior por conta do número mínimo de mestres e doutores, eis que surge (das cinzas) a velha arenga de que o formado em Direito é doutor.

A história, que, como boa mentira, muda a todo instante seus elementos, volta à moda. Agora não como resultado de ato de Dona Maria, a Pia, mas como consequência do decreto de D. Pedro I.

Fui advogado durante muitos anos antes de ingressar no Ministério Público. Há quase 20 anos sou professor de Direito. E desde sempre vejo “docentes” e “profissionais” venderem essa balela para os pobres coitados dos alunos.

Quando coordenador de curso tive o desprazer de chamar a atenção de (in) docentes que mentiam aos alunos dessa maneira. Eu lhes disse, inclusive, que, em vez de espalharem mentiras ouvidas de outros, melhor seria ensinarem seus alunos a escreverem, mas que essa minha esperança não se concretizaria porque nem mesmo eles sabiam escrever. Pois bem.

Naquela época, a história que se contava era a seguinte: Dona Maria, a Pia, havia “baixado um alvará” pelo qual os advogados portugueses teriam de ser tratados como doutores nas Cortes Brasileiras. Então, por uma “lógica” das mais obtusas, todos os bacharéis do Brasil, magicamente, passaram a ser Doutores. Não é necessária muita inteligência para perceber os erros desse raciocínio. Mas como muita gente pode pensar como um ex-aluno meu, melhor desenvolver o pensamento (dizia meu jovem aluno: “o senhor é advogado; pra que fazer doutorado de novo, professor?”).

1) Desde já saibamos que Dona Maria, de Pia nada tinha. Era Louca mesmo! E assim era chamada pelo Povo: Dona Maria, a Louca.

2) Em seguida, tenhamos claro que o tão falado alvará jamais existiu. Em 2000, o Senado Federal presenteou-me com mídias digitais contendo a coleção completa dos atos normativos desde a Colônia (mais de quinhentos anos de história normativa). Não se encontra nada sobre advogados, bacharéis, dona Maria, etc. Para quem quiser, a consulta hoje pode ser feita pela Internet.

3) Mas digamos que o tal alvará existisse e que dona Maria não fosse tão louca assim e que o povo fosse simplesmente maledicente. Prestem atenção no que era divulgado: os advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores perante as Cortes Brasileiras. Advogados e não quaisquer bacharéis. Portugueses e não quaisquer nacionais. Nas cortes brasileiras e só!

Se você, portanto, fosse um advogado português em Portugal não seria tratado assim. Se fosse um bacharel (advogado não inscrito no setor competente), ou fosse um juiz ou membro do Ministério Público você não poderia ser tratado assim. E não seria mesmo. Pois os membros da Magistratura e do Ministério Público tinham e têm o tratamento de Excelência (o que muita gente não consegue aprender de jeito nenhum). Os delegados e advogados públicos e privados têm o tratamento de Senhoria. E bacharel, por seu turno, é bacharel; e ponto final.

4) Continuemos. Leiam a Constituição de 1824 e verão que não há “alvará” como ato normativo. E ainda que houvesse, não teria sentido que alguém, com suas capacidades mentais reduzidas (a Pia Senhora), pudesse editar ato jurídico válido. Para piorar: ainda que existisse, com os limites postos ou não, com o advento da República cairiam todos os modos de tratamento em desacordo com o princípio republicano da vedação do privilégio de casta. Na República vale o mérito. E assim ocorreu com muitos tratamentos de natureza nobiliárquica sem qualquer valor a não ser o valor pessoal (como o brasão de nobreza de minha família italiana que guardo por mero capricho porque nada vale além de um cafezinho e isto se somarmos mais dois reais).

A coisa foi tão longe à época que fiz questão de provocar meus adversários insistentemente até que a Ordem dos Advogados do Brasil se pronunciou diversas vezes sobre o tema e encerrou o assunto.

Agora retorna a historieta com ares de renovação, mas com as velhas mentiras de sempre. Agora o ato é um “decreto”. E o “culpado” é Dom Pedro I (IV em Portugal). Mas o enredo é idêntico. E as palavras se aplicam a ele com perfeição.

Vamos enterrar tudo isso com um só golpe?!

A Lei de 11 de agosto de 1827, responsável pela criação dos cursos jurídicos no Brasil, em seu 9ª artigo diz com todas as letras: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos cursos, com aprovação, conseguirão o grau de bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos que devem formar-se, e só os que o obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes”.

Traduzindo o óbvio. A) Conclusão do curso de cinco anos: Bacharel. B) Cumprimento dos requisitos especificados nos Estatutos: Doutor. C) Obtenção do título de Doutor: candidatura a Lente (hoje Livre-Docente, pré-requisito para ser Professor Titular).

Entendamos de vez: os Estatutos são das respectivas Faculdades de Direito existentes naqueles tempos (São Paulo, Olinda e Recife). A Ordem dos Advogados do Brasil só veio a existir com seus Estatutos (que não são acadêmicos) nos anos trinta.

Senhores.
Doutor é apenas quem faz doutorado. E isso vale também para médicos, dentistas, etc. etc. A tradição faz com que nos chamemos de doutores. Mas isso não torna doutor nenhum médico, dentista, veterinário e, mui especialmente, advogados. Falo com sossego. Afinal, após o meu mestrado, fui aprovado mais de quatro vezes em concursos no Brasil e na Europa e defendi minha tese de Doutorado em Direito Internacional e Integração Econômica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aliás, disse eu: tese de Doutorado. Esse nome não se aplica aos trabalhos de graduação, de especialização e de mestrado. E nenhuma peça judicial pode ser chamada de tese, com decência e honestidade.

Escrevi mais de 300 artigos, pareceres (não simples cotas), ensaios e livros. Uma verificação no site eletrônico do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) pode comprovar o que digo. Tudo devidamente publicado no Brasil, na Dinamarca, na Alemanha, na Itália, na França, Suécia, México. Não chamo nenhum destes trabalhos de tese, a não ser minha sofrida tese de Doutorado.

Após anos como advogado, eleito para o Instituto dos Advogados Brasileiros (poucos são), tendo ocupado comissões como a de Reforma do Poder Judiciário e de Direito Comunitário e após presidir a Associação Americana de Juristas, resolvi ingressar no Ministério Público da União para atuar especialmente junto à proteção dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores públicos e privados e na defesa dos interesses de toda a Sociedade. E assim o fiz: passei em quarto lugar nacional, terceiro lugar para a região Sul/Sudeste e em primeiro lugar no Estado de São Paulo. Após rápida passagem por Campinas, insisti com o Procurador-Geral em Brasília e fiz questão de vir para Mogi das Cruzes.

Em nossa Procuradoria, Doutor é só quem tem título acadêmico. Lá está estampado na parede para todos verem.

E não teve ninguém que reclamasse; porque, aliás, como disse linhas acima, foi a própria Ordem dos Advogados do Brasil quem assim determinou, conforme as decisões seguintes do Tribunal de Ética e Disciplina: Processos: E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02; E-2067/99; E-1.815/98.

Em resumo, dizem as decisões acima: não pode e não deve exigir o tratamento de Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua titulação acadêmica para tanto.

Como eu costumo matar a cobra e matar bem matada, segue endereço oficial na Internet para consulta sobre a Lei Imperial: 

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm

Os profissionais, sejam quais forem, têm de ser respeitados pelo que fazem de bom e não arrogar para si tratamento ao qual não façam jus. Isso vale para todos. Mas para os profissionais do Direito é mais séria a recomendação.

Afinal, cumprir a lei e concretizar o Direito é nossa função. Respeitemos a lei e o Direito, portanto; estudemos e, aí assim, exijamos o tratamento que conquistarmos. Mas só então.

* Jurista, membro vitalício do Ministério Público da União, doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Público e Ciência Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor visitante da Universidade de São Paulo, ex-presidente da Associação Americana de Juristas, ex-titular do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-titular da Comissão de Reforma do Poder Judiciário e da Ordem dos Advogados do Brasil.

www.conjur.com.br

No mínimo, Dilma vence

Manchetes dos principais jornais do País hoje:


O Globo: "Dilma vence 1ª batalha na votação do mínimo"

Folha de S. Paulo: "Dilma enquadra PMDB e mínimo será de R$ 545"

O Estado de S. Paulo: "Liberação de verba cresce 441% antes de votar mínimo"

Jornal do Commercio: "Governo vence batalha do mínimo na Câmara"

Zero Hora: "Mínimo de R$ 545 passa na Câmara"



Acompanhamos toda a votação na Câmara até a primeira hora de hoje. E diante de tanta demagogia de quem foi governo e só produziu arrocho e desemprego para o trabalhador brasileiro, aconselhamos a presidenta Dilma a conversar mais com o povo, por meio de pronunciamentos oficiais em rádio e tv.

A primeira fala da presidenta em cadeia de rádio e televisão semana passada, por ocasião da volta às aulas, mostrou uma Dilma muito descontraída, à vontade, segura, familiarizada com a parafernália eletrônica.

Em momentos importantes como este da votação do salário mínimo, em que a mídia de mercado e as oposições, mesmo desnorteadas, fazem um estardalhaço, procurando confundir e desvirtuar, a presidenta poderia se dirigir diretamente ao povo, explicando até mais didaticamente a razão do valor estabelecido pelo governo, os critérios de cálculo etc. Sem tecnicidades. Sem linguagem empolada. Trocando em miúdos. Por que não?

Aproxime-se mais do povo, presidenta Dilma! E o povo não lhe faltará!

Brasil, país de doutores

O post " 'Doutora' em quê?", dias atrás, acabou levantando uma polêmica sobre o uso correto do tratamento "doutor" a pessoas sem o título de doutorado.

É realmente uma questão controversa. Há os que defendem e os que condenam o uso.

Me posicionei e continuo me posicionando contra tal uso, porque me parece vinculado a comportamento subserviente manifesto em bolsões de subalternidade.

Por outro lado, a república já foi proclamada há mais de um século. Faz sentido invocar um decreto da época do Império para justificar a continuidade do emprego de "doutor" a médicos e advogados?

É de se perguntar se tal uso não seria resultado também da existência de bolsões de prepotência, de arrogância, de elitismo, de megalomania, de superioridade...

Tem sentido, em pleno século XXI, manter uma tradição tão provinciana, tão atentatória à igualdade entre os cidadãos protegida pelas constituições mais avançadas e defendida pelo menos teoricamente por todos nós?

É uma questão interessante para se debater, para refletir. Envolve valores, direitos, cidadania.

Por isso, resolvi estimular esta reflexão, publicando alguns artigos interessantes. Inicio com um texto de março de 2010 encontrado no portal G1.


Brasil, país de doutores



                       doutores_595

Durante uma tese de doutorado você passa por diversas situações que o estimulam a desistir, e simplesmente abandonar tudo. São longas horas de dedicação a um determinado assunto. Durante anos você é mal remunerado e nem sonha com qualquer direito trabalhista. Afinal, você é um “estudante”. Mas também não tem direitos estudantis. Esse “limbo” acadêmico que é o doutorado termina após muito sacrifício e abstinência dos prazeres mundanos, sacrifício da saúde, pouco contato com a família e com amigos. Isso acontece com a maioria dos doutorandos em ciências biológicas. Acredito que não seja muito diferente em outras áreas do conhecimento.

Se você é exceção, acaba com uma bela tese e os resultados serão publicados numa revista de impacto ou mesmo num livro, dependendo do assunto. Em geral, a maioria dos doutorandos “só” termina a tese. Ela será impressa e arquivada em uma prateleira de alguma biblioteca, de alguma universidade. Resta a sensação de ter contribuído um pouquinho com o potencial intelectual da espécie humana. Para muitos isso basta, afinal agora você tem o título de “doutor”, é uma autoridade em determinada área e um leque maior de possibilidades poderá se abrir para você.

Segundo dicionários da língua portuguesa, “doutor” é aquele que atingiu o maior grau de instrução universitária. É todo aquele que defende uma tese na presença de uma comissão julgadora de especialistas da área, os quais julgam a originalidade e relevância da dissertação. Apenas instituições universitárias autorizadas podem conceder o título.

No Brasil, “doutor” é também um título tradicionalmente associado a bacharéis, médicos e advogados. Em alguns casos, como para os advogados e certos religiosos, o título é garantido constitucionalmente, com origens não muito nobres, datadas do período da colonização brasileira. Em outros, como no caso dos médicos, o título é informal, garantido pelo povo como respeito ou admiração a esses profissionais.

Em países de língua inglesa, os títulos profissionais são usados de forma mais específica para cada caso ou profissão. Por exemplo, usa-se o termo “Medical Degree” ou simplesmente “MD”, informando que o profissional é formado em medicina. Caso esse profissional defenda uma tese, ganha também o direito de usar o “PhD” (Philosophiae Doctor), assim como o “Dr” brasileiro, indicando o mais alto grau acadêmico. “MD” e “PhD” distinguem dois tipos de profissionais de saúde, que podem ou não usar os dois títulos.

Voltando ao Brasil. Na realidade, em nosso país, o título de “doutor” se estende para todo “homem muito instruído em qualquer ramo” (a definição do Houaiss), incluindo engenheiro, pastor, político, economista, dentista, delegado etc. E como “instrução” é um parâmetro subjetivo, acaba-se assumindo que todo homem “bem-sucedido” teve instrução. Na sociedade brasileira, a vestimenta do indivíduo, ou seus bens materiais, refletem a imagem “bem-sucedida”. É essa imagem que faz muito engravatado ser chamado de “Doutor” pelas pessoas, principalmente as mais humildes.

Esse percurso inusitado do termo “doutor” acaba dividindo classes sociais em doutores (ricos) e não doutores (pobres). “Doutor” deixa de ser utilizado como um título e vira pronome de tratamento. O famoso “Pra você é Doutor Fulano” anda de mãos dadas com o egocêntrico fenômeno nacional “Você sabe com quem está falando?”, bem utilizado em discussões onde o interlocutor busca uma forma de demonstrar superioridade e proteção.

O uso indiscriminado do termo reflete a forte tendência do tradicional distanciamento das classes sociais no Brasil. Nesse cenário, o papel do doutor acadêmico acaba diluído, pois o número desses profissionais é bem menor. Longe de mim querer restringir o direito de uso do termo “doutor” somente àqueles que defenderam uma tese. Meu objetivo com esse texto é apenas informar o leitor que existe uma classe de doutor – aquele que faz pesquisa científica. A maioria desses doutores não gosta de ser chamada de doutor, não ganha bem e raramente usa gravata.

Há doutores bons e ruins em todas as áreas, doutores que recebem o título por mérito e outros que se autointitulam doutores.

Pequenas ações, como reciclar o lixo, economizar água ou recolher o cocô do cachorro da rua, podem alterar em muito nosso ambiente social. O uso do termo “doutor” com mais cuidado pela população pode ajudar a diminuir a distância social, valorizar os melhores profissionais em todos os ramos, além de estimular o aperfeiçoamento individual.

Alysson Muotri