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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O "Ovo da Serpente" prestes a eclodir em São Paulo


Momento dramático na cidade de São Paulo: há duas semanas das eleições, o candidato que lidera as pesquisas de intenção de voto representa mais retrocesso e obscurantismo para a cidade que já vive sob o descalabro de uma administração tacanha, obtusa, incompetente e antidemocrática.

"Uma vasta camada da população que foi integrada à sociedade pela via do consumo, e não da educação cívica, é o campo de disputa eleitoral", como alerta Luciano Martins Costa.

Dois excelentes artigos seus tratam deste risco que paira sobre todos nós, pobres cidadãos da Pauliceia Desvairada.




O ovo da serpente

Luciano Martins Costa

O debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, organizado pelo jornal O Estado de S. Paulo e transmitido pela TV Cultura na noite de segunda-feira (17/9), é analisado nas edições de terça-feira pelos jornais paulistas. A principal característica do encontro, na avaliação da imprensa, foi o fato de o candidato do PRB, Celso Russomanno, que aparece em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, ter sido poupado pelos adversários, que estariam mais preocupados, cada um, em garantir sua presença no segundo turno.

A rigor, o evento não foi capaz de produzir material jornalístico mais instigante, a não ser num dos momentos em que os participantes tinham que fazer perguntas uns aos outros. Esse momento se configurou quando o candidato do PSOL, Carlos Giannazi, questionou Celso Russomanno por ele haver tido sua carreira política financiada com dinheiro da indústria de armas.

O candidato do PRB não respondeu diretamente a pergunta. Ele estava empenhado em demonstrar que sua proposta de equipar e treinar a Guarda Civil Metropolitana e, simultaneamente, formar contingentes de guardas-noturnos voluntários, seria a solução ideal para reduzir a violência em São Paulo. E acrescentou que sua proposta tem base legal num decreto de 1968, ainda durante o regime militar, que regulamentou a atividade dos vigias de rua.


Aberração perigosa

O debate deveria ter nesse ponto exato sua principal justificativa. Mas os demais candidatos não deram importância à questão levantada por Giannazi. E no dia seguinte, curiosamente, os jornais não parecem ter percebido que há uma relação perigosa entre a obsessão de Celso Russomanno em montar esquadrões de vigilantes e sua ligação com a indústria de armamentos.

Herdeiro político de Paulo Maluf, para quem a solução administrativa contra o crime sempre foi “a Rota na rua”, Russomanno parece ter avançado muito além no perigoso caminho de militarizar a política da segurança pública.

O que a pergunta de Giannazi desvenda é mais do que a visão tosca do candidato que lidera as pesquisas sobre um dos principais problemas da cidade. No entanto, os jornais não parecem ter percebido o alcance do que pode vir a ser a colocação em prática de uma proposta como a que vem sendo defendida pelo candidato Russomanno.

Esse tópico do debate mereceria ainda um pouco mais de atenção por causa da resposta dada por Russomanno à pergunta de Giannazi. A revelação de que Russomanno fez parte da “bancada da bala” no Congresso Nacional, somada ao fato de que ele fundamenta sua ideia de força voluntária de segurança num decreto da ditadura, deveria no mínimo provocar alguma curiosidade nos jornalistas.

Acrescente-se a informação de que, quando deputado, Russomanno tentou impedir a aprovação da Lei da Ficha Limpa, e teremos um retrato mais completo de sua composição ideológica.

Até aqui ele tem sido tratado como uma aberração política do tipo “Tiririca”, cuja popularidade seria, talvez, fruto do cansaço do eleitor com a bipolaridade raivosa que divide petistas e tucanos e coloca os dois núcleos de militantes que lideraram a luta pela redemocratização na contingência de terem que fazer alianças que deveriam repudiar.

Mas a pergunta de Giannazi e a resposta de Russomanno revelam um perfil mais preocupante: estamos lidando com uma incógnita política cujos riscos podem ir muito além da falta de experiência administrativa ou da eventual vinculação com grupos religiosos fundamentalistas.


Receita acabada

A indústria de armas certamente aposta todos seus projéteis na possibilidade de ter na maior cidade brasileira um prefeito cuja grande ambição é colocar homens armados em todos os quarteirões, com a agravante de que tais vigilantes não teriam relação funcional com a administração pública.

A pergunta de Giannazi dá mais sentido à suspeita do atual prefeito, Gilberto Kassab, de que Russomanno pretende formar milícias para conter a violência.

Junte-se a esses dados o fato de que Russomanno tem sua principal base de apoio na chamada nova classe média, aquele imenso contingente de cidadãos que ascendeu em termos de renda mas ainda tem que viver nos bairros mais afetados pela criminalidade – e temos a receita completa para um retrocesso que não interessa a ninguém.

Mas os jornais só enxergam o embate entre José Serra, do PSDB, e Fernando Haddad, do PT, enquanto o ovo da serpente eclode no ninho.


***

O brejal do obscurantismo

Luciano Martins Costa

Os jornais têm trazido, nos últimos dias, reportagens sobre a preocupação de autoridades da igreja católica com alguns aspectos da campanha eleitoral do candidato a prefeito de São Paulo Celso Russomanno, do PRB. Apoiado oficialmente por organizações evangélicas como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e confissões pentecostais, o candidato é visto como um risco de manipulação política de parte da população contra os católicos.

O ponto central da discórdia é a presença, na coordenação da campanha de Russomanno, do bispo licenciado da IURD, Marcos Pereira, também presidente do PRB, que no ano passado publicou manifesto acusando a igreja Católica de apoiar políticas liberais sobre direitos civis de homossexuais.

A Folha de S. Paulo informa na edição de segunda-feira (17/9) que a arquidiocese de São Paulo mandou distribuir em suas 300 igrejas um artigo do arcebispo dom Odilo Scherer, a maior autoridade católica da cidade, no qual ele critica Russomanno por usar a religião em sua campanha.


Discurso moralista

Líder nas pesquisas de intenção de voto, o candidato do PRB tem recebido apoio de denominações evangélicas e não faz questão de desautorizar manifestações de correligionários envolvendo questões polêmicas que, na boca de lideranças religiosas, reforçam preconceitos e retardam o avanço de políticas sociais.

No caso específico que envolveu o chefe de sua campanha, o ataque foi contra o projeto de conscientização contra a homofobia planejado no ano passado para ser conduzido nas escolas públicas. Apelidado pelos críticos de “kit gay”, o material não chegou a ser distribuído.

O episódio chama atenção para o fato de que certas declarações, como a do chefe de campanha de Russomanno, ganham mais ou menos destaque na imprensa conforme o momento político e de acordo com os protagonistas envolvidos.

Em 2010, quando representantes da própria igreja católica e de confissões evangélicas tentaram interferir na campanha à Presidência da República, contra a então candidata Dilma Rousseff, por causa da proposta de descriminalização do aborto, faltaram disposição e senso crítico aos jornais ao abordar tais manifestações de obscurantismo.

Em ambos os casos, as declarações buscavam sensibilizar a ampla camada da sociedade brasileira que vem sendo chamada de “nova classe média”. Desde logo, é preciso notar que esses brasileiros, que hoje constituem quase metade da população, eram até há bem pouco tempo marginalizados do processo político, não servindo para outra coisa a não ser como massa de manobra de candidatos populistas.

O discurso moralista e a pregação preconceituosa têm como pressuposto a ideia de que eles se tornaram consumidores, mas seguem incapazes do discernimento necessário para fazer escolhas adequadas nas eleições. É a esses eleitores, em cujo conjunto se concentram as confissões religiosas que apoiam Russomanno, que se dirige o discurso mais conservador.


Problemas reais

Observe-se, por outro lado, que essa disputa se dá num contexto em que a política se divide em dois blocos antagônicos, que se configuraram justamente durante os debates da Constituinte de 1988 e se tornaram cada vez mais inconciliáveis desde então.

Esse processo de ruptura entre dois campos ideológicos nascidos do mesmo esforço pela redemocratização do país persiste e se agrava por um período ainda mais longo do que aquele em que o Brasil foi dominado pelo regime autoritário e contamina outros campos além do político-partidário, como a própria imprensa.

Russomanno, com seu discurso populista, rompe essa dicotomia e se apresenta como um candidato viável fora desse contexto. No entanto, seu principal recurso de campanha não é a hipótese da superação da dicotomia política, mas o apelo a preconceitos, propostas simplistas e soluções mágicas. Por trás de sua plataforma rosnam os arautos da intolerância e da manipulação dos espíritos.

Uma vasta camada da população que foi integrada à sociedade pela via do consumo, e não da educação cívica, é o campo de disputa eleitoral.

A manifestação do arcebispo contra a mistura de religião com política retrata uma situação real: corremos o risco de ver a presente eleição acontecer sem que tenham entrado em discussão os problemas reais da cidade, com os candidatos atolados no brejal do obscurantismo.


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