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sábado, 5 de abril de 2014

Apenas Mujica


O PRESIDENTE MAIS POBRE DO MUNDO (E O MAIS FELIZ)





Mujica


Presidente uruguaio frisa o espírito público que guia a atividade política


José Miguel Wisnick

O que primeiro me chamou a atenção, no momento em que me deparei com José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai, falando ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, não foi o conteúdo da entrevista em si. Esta se dava ao ar livre, os três jornalistas sentados num banco de madeira sem encosto, num lugar rural, na boca do mato. Acomodada na relva, uma cachorra manca, que depois eu soube chamar-se Manuela, acompanhava a conversa com atenção relaxada. Um cachorro maior vinha, às vezes, lamber pachorrentamente a mão dos entrevistadores. A poltrona do presidente era uma dessas cadeiras velhas de jardim, de ferro, com estofado capitonê. A cena se passava na casa, meio sítio, onde ele mora. Trajava uma camisa qualquer, bermudão e chinelo de couro. O ambiente nem por isso deixava de ser um cenário de Estado. É que cada elemento da cena combinava intimamente com o discurso político que ali se enunciava.

Há lugares na Argentina, e mais ainda no Uruguai, talvez, onde se convive com uma atmosfera que nos soa pré-midiática, na qual a televisão não chegou a impor o bombardeio que conhecemos, e onde uma classe média de hábitos despojados respira uma atmosfera culta. Lembro o adorável serralheiro José Traine, meu amigo, sua casa na Boca, em Buenos Aires, e o refinadíssimo músico Carlos Aguirre, da cidade de Paraná, que toca divinamente piano, acordeom, flauta, e carrega as caixas de som que tem que levar ele mesmo para seus shows, dirigindo a perua cambaleante em que transporta a banda. Embora excepcionais na sua capacidade de expressão, e especiais como pessoas, não são casos isolados. Participam de um caldo de cultura letrado do qual o culto à celebridade está muito distante, seja como modelo a atingir, seja como força de pressão circundante.

Acho que a cena da entrevista de José Mujica, com tudo o que tem de surpreendente e autêntica, soaria extravagante ou forçada se não fosse representativa desses nichos culturais. Mujica, além do mais, é um homem maduro no sentido forte da palavra (diferentemente do Maduro venezuelano), que reflete com transparência sobre limites e possibilidades, que sabe que o Uruguai, um pequeno país de pouco mais de três milhões de habitantes, formado por um forte contingente de imigrantes exilados, dispõe de certa margem de manobra que lhe possibilita não se submeter completamente aos imperativos da sociedade de massas (e seus decorrentes marqueteiros). O Uruguai, aliás, é pioneiro no reconhecimento do divórcio, na jornada de trabalho de oito horas, no voto feminino, no casamento gay, na penalização dos castigos físicos infligidos às crianças, na eutanásia para o doente terminal que a deseje, no aborto como necessidade da saúde pública (minha amiga Rachel Gutierrez me transmite esse dados, tentada, por suas raízes sulinas e seu desencanto com o Brasil, a transferir-se para a banda oriental). Assim, um estadista pode chegar ao ponto de assumir sem maquiagem o lugar social de onde fala, com uma sinceridade inusual num mundo de retóricas muito demarcadas. Ao fazê-lo, Mujica frisa o lugar republicano da igualdade dos direitos e o espírito público que guia a atividade política (interesses particulares e desejo de riqueza, diz ele, devem se dirigir às finanças, à indústria e ao comércio).

Sobre a famigerada descriminalização e regulação da maconha no Uruguai, José Mujica sustenta termos que se propõem realistas e que se sabem experimentais: a guerra ao narcotráfico (que é pior que a droga) tem se mostrado incapaz de resolver um problema que só aumenta, multiplicando violência e corrupção em todas as camadas sociais. A estatização da produção da droga, regulada para consumidores inscritos, dentro de certa quantidade, visa a roubar astuciosamente esse mercado ao tráfico (ele o reconhece), e a tirar os usuários de uma clandestinidade sem limites que pode se tornar nefasta e destrutiva.

Sobre a herança da ditadura, diz que, no Uruguai, o Estado não se omitiu em relação aos crimes cometidos no passado, mas agindo dentro dos limites da lei, isto é, sem imitar a ditadura. Afirma que o mecanismo mais inteligente praticado, nesse sentido, foi o da África do Sul, guiado por Mandela e Tutu: a exigência da admissão pública, pelos torturadores, das torturas cometidas, perante os torturados e o país, e só mediante esse ato simbólico a anistia. (No Brasil, como sabemos, e ao contrário disso, decretou-se uma anistia sem qualquer admissão pública da verdade, que trava obscuramente a democracia e fomenta a continuidade subterrânea da ditadura.)

Sem desconhecer que não há o que não seja teatro e jogo de cena na comunicação humana, é raro ver um político não usando as mesmas máscaras que vedam já o primeiro grau de qualquer transparência. As palavras e a música da fala diziam isso, assim como um certo riso nos olhos, o lugar, o ar livre, sem esquecer a quietude de Manuela.

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