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quinta-feira, 14 de março de 2013

O Papa pobre, no suntuoso Vaticano


Pouco a pouco nos acostumamos a ouvir e a ver, através dos meios de comunicação, a crônica negra da sociedade contemporânea... O império do dinheiro, com seus efeitos demoníacos como as drogas, a corrupção, o tráfico de pessoas (incluindo de crianças), junto com a miséria material e moral são frequentes. 
                                                                     Cardeal Jorge Mario Bergoglio, o novo papa


Conservador moderado, preocupado com as mazelas do mundo, intelectual politizado, bem-humorado, discreto, conciliador, amante de livros e poesia, crítico da pobreza e da corrupção, humilde, 
que prepara as próprias refeições.

Devoto do primeiro Francisco, o de Assis, o Santo dos Pobres e Defensor dos Animais, Papa Francisco I foi eleito ontem, para comandar a Igreja, conduzir um rebanho de 1,2 bilhão de católicos no mundo, transitando no luxuoso Vaticano, com suas intrigas, fogueiras de vaidade e disputas de poder.



Papa Francisco: um príncipe pobre no luxo vaticano


Perfil de homem modesto esconde uma voz sempre disposta a denunciar a pobreza, a corrupção e a desigualdade social

Renata Malkes 



O então arcebispo de Buenos Aires, 

Jorge Mario Bergoglio    AP

Rio — Assim que tornou-se pública a identidade do novo Papa, rótulos surgiram atrelados ao nome de Jorge Mario Bergoglio. “Flexível”, para quem guarda na memória uma imagem de 2001, quando ele lavou e beijou os pés de 12 pacientes com Aids durante visita a um hospital. “Conservador moderado”, na definição de alas da Igreja que veem no argentino alguém que conseguiu conter o avanço de correntes liberais entre os jesuítas, ao mesmo tempo em que representa as mazelas do mundo em desenvolvimento. “Ultraconservador” é a aposta dos argentinos que lembram do então arcebispo de Buenos Aires combativo, firmemente contrário à adoção do casamento gay no país em 2010. E “incógnita”, para quem recorda o ataque desferido em setembro passado contra padres que se recusaram a batizar crianças nascidas fora do casamento na Argentina. O adjetivo que melhor parece definir o ex-arcebispo de Buenos Aires, porém, é outro — humilde.

Aos 76 anos, o primeiro Pontífice jesuíta e latino-americano é conhecido como um intelectual politizado, que desprezou o conforto da moradia oficial da arquidiocese para viver num quartinho simples no segundo andar de um prédio anexo à Catedral de Buenos Aires. Abriu mão de carros oficiais e viajava de ônibus e metrô para realizar seu trabalho pastoral, sendo fiel aos votos de pobreza de São Francisco de Assis, a quem homenageou quando aceitou ontem tornar-se o Papa Francisco. E quem o conhece já questiona como alguém tão modesto vai se adequar à suntuosidade do Vaticano.



Biografia bem antes de chegar à Santa Sé

A retrospectiva da vida do Papa Francisco vai mesmo ao encontro da primeira impressão deixada ontem. No primeiro discurso diante de milhares de fiéis que se aglomeraram na Praça de São Pedro, ele exalou tranquilidade e deixou escapar sorrisos. Passou a imagem de um Pontífice bem-humorado e até brincalhão, que não titubeou ao dizer que a Igreja fora buscá-lo “quase no fim do mundo”. Humano.

Os jornalistas Sergio Rubín, um argentino especializado em religião, e a italiana Francesca Ambrogetti, radicada em Roma, concordam. Desde 2005, a dupla percebeu a personalidade intrigante do cardeal que quase foi eleito Papa e escreveu sua biografia, “O Jesuíta”, lançada em 2010. Baseado numa série de encontros com o então cardeal, o livro relata um Bergoglio quase caricato para um argentino: fã de tango e torcedor apaixonado do San Lorenzo de Almagro, um dos cinco maiores clubes de futebol local, fundado, curiosamente, por um padre salesiano, Lorenzo Massa.

A dupla garante, ainda, que Papa Francisco é bem-humorado, do tipo que conta piadas sobre religião e até sobre os padres. E também gosta de cozinhar a própria comida, tarefa que aprendeu ainda menino, com a mãe.

— Bem, nunca matei ninguém — disse ele, certa vez, em tom de galhofa, sobre o resultado de suas experiências culinárias.

Colegas contam que, nas reuniões do Vaticano, o então cardeal gostava de se sentar nas últimas fileiras. Tentava a todo custo se manter discreto, mas, desde 2005, isso ficou difícil. E a analogia ao futebol é adequada: no conclave que elegeu o cardeal Joseph Ratzinger, fora justamente o jesuíta argentino seu principal desafiante. Segundo um diário anônimo do conclave, que vazou à imprensa em setembro daquele ano, Bergoglio teria recebido 40 votos na terceira votação. Mas acabou desistindo da disputa, em parte, devido a uma denúncia que manchou sua reputação três dias antes da abertura do conclave. Um advogado de direitos humanos entrara com uma ação na Justiça acusando o arcebispo de Buenos Aires de cumplicidade no sequestro de dois padres jesuítas em 1976, sob a ditadura militar argentina. Segundo o vaticanista John Allen Jr., ele também foi vítima de uma campanha negativa por e-mail, aparentemente orquestrada por colegas da Companhia de Jesus. Ele negou veementemente todas as acusações.

Até o fato de ter renunciado àquela disputa com Ratzinger parece ter-lhe rendido pontos na Cúria Romana — ainda que ele não seja um homem de carreira nos círculos administrativos da Igreja. Numa entrevista ao diário “La Stampa”, no ano passado, deu sinais de estar ciente dos problemas da contestada Cúria. Mas apontou-os com sutileza.

— O carreirismo e a busca de uma promoção vêm sob a categoria do mundanismo espiritual. A Cúria Romana tem seus pontos negativos, mas eu acho que muita ênfase é colocada nesses aspectos negativos, e não na santidade dos numerosos sacerdotes e leigos que trabalham nela — declarou.

Esse tom conciliador parece se refletir na própria escolha de Bergoglio para o Trono de Pedro. Nascido em Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936, ele é filho de um ferroviário italiano que emigrou de Turim para a Argentina, onde teve cinco filhos — uma eleição certeira, capaz de apaziguar a majoritária ala italiana da Cúria ao mesmo tempo que acena para o mundo em desenvolvimento.



Sem pulmão, mas com fôlego para a política

O jovem Bergoglio sonhava em ser químico e chegou a completar um curso técnico. Mas, aos 21 anos, optou pelo sacerdócio e, em 1958, entrou na Companhia de Jesus — dez anos depois de perder um dos pulmões devido a uma infecção respiratória. Foi ordenado sacerdote em 1969 e, durante a ditadura argentina, ascendeu ao comando provincial dos jesuítas.

O novo Pontífice fala espanhol, italiano e alemão. Construiu toda sua carreira eclesiástica na Argentina — exceto por dois breves períodos vividos no Chile e na Alemanha, onde estudou. Amante da poesia e dos livros, ele revelou a seus biógrafos ser um leitor voraz, apreciador de Fiódor Dostoiévski e Jorge Luis Borges, “um sábio, um agnóstico que todas as noites rezava o Pai-Nosso porque havia prometido à mãe”. Até a revista do Partido Comunista da Argentina era lida com atenção, embora o Papa tenha ressaltado:

— Nunca fui comunista.

Pelo contrário. Ele chegou até a combater os partidários da Teologia da Libertação e os lampejos marxistas nos anos 70, pois fazia questão de se manter fiel ao Evangelho. A batina, porém, não ofuscou sua vocação para a política. Conhecido pelo enfoque no trabalho pastoral e na obra social, Bergoglio fez das críticas a pobreza e corrupção suas marcas registradas.

Teve, desde 2003, embates duros com o governo kirchnerista. Em suas homilias, atacava não só a situação social da Argentina como o “clima de confrontação política” do país. E depois de irritar o ex-presidente Néstor Kirchner em várias ocasiões, a batalha se estendeu à atual presidente e viúva, Cristina Kirchner, que não raro o acusa de ingerência indevida nos assuntos de Estado.

Os dois, aliás, parecem travar uma guerra particular. A militância de Bergoglio não conseguiu impedir a Argentina de tornar-se o primeiro país latino-americano a autorizar o casamento gay, em 2010. Ou barrar determinações do governo de Cristina, autorizando, por exemplo, a distribuição de anticoncepcionais gratuitos. Certa vez, o então arcebispo disse que as adoções de crianças por casais homossexuais eram uma discriminação contra os menores. A presidente reagiu, classificando as declarações como “da época medieval e da Inquisição”.

Bergoglio cometeu algumas faltas, mas foi jogador de peso na arena nacional de seu país. Agora, porém, será testado como numa Copa do Mundo da religião. E com 1,2 bilhão de católicos no planeta, torcida não faltará para que o Papa da Argentina siga a tradição dos gramados: ataque os adversários, faça gols e leve ao Vaticano a inspiração — e a graça — do futebol azul e branco.


O Globo Online

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