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sábado, 26 de janeiro de 2013
São Paulo: o pão nosso de cada dia
CENA PAULISTANA
Apesar de megalópole, uma das maiores do mundo, 459 anos ontem, 13 milhões de almas, "aglomerada solidão", como cantou Tom Zé, a cidade de São Paulo ainda hoje abriga em suas ruas cenas e personagens como a do vendedor ambulante de alhos e outras mercadorias.
O antigo e o ultramoderno convivem no dia a dia da metrópole alucinante. Sem conflitos, sem impasses.
O pão nosso de cada dia. Em São Paulo
Apóllo Nátali*
Zelão calcula: solta 7 mil gritos por mês. De porta em porta, rua por rua, bairro por bairro, explode sempre o mesmo berro: alhô!!! É vendedor de alhos na metrópole de São Paulo, 13 milhões de habitantes, 459 anos de vida em janeiro deste 2013. Ergue e abaixa a cabeça, a caminhar. Olha dos lados. Voz de trovão. Alta agora, menos lá na frente. Um tom para esquerda, outro para a direita. Os gritos invadem salas, quartos, cozinhas, quintais, quarteirões. Os cães ladram. Ele e sua sacola. Nos portões, mulheres, crianças. Ganha para comprar comida, chinelos e o aluguel.
Peguem o lápis: Zelão passa por 200 casas por dia. Ou 1.200 por semana. Ou 3.600 por mês. Em cada porta, dois gritos: 7.200 por mês. (Ou mais. Tem vez que ele grita três ou quatro vezes na mesma casa). São 43.200 portas por ano, 86.400 gritos por ano. Já vendeu alho em 1 milhão e 500 mil portas, em 35 anos. Sendo 2 gritos em cada porta, ganhar o pão até agora lhe custou 3 milhões de alhô!!! Ou mais.
Vende alho chileno. Graúdo, suculento, caro. Negocia 100 cabeças por dia. São 1.200 dentes por dia – cada alho chileno tem 12 dentes. São 3.600 dentes por mês, 43.200 por ano. Segue-se que já espalhou 1 milhão e 500 mil dentes de alhos, ou mais, nesses 35 anos, nas mesas de suas freguesas. Para vender 1 milhão e 500 mil dentes, de seu peito saíram mais de 2 milhões e 500 mil gritos. Para cada dente que vendeu, 1 décimo de grito saiu de sua garganta.
Ânimo para trabalhar – Mas espera aí. De onde vem esse ânimo, essa coragem, para pular da cama cada manhã e gritar alhô toda a vida? Empresas promovem convescotes para seus vendedores e suas mulheres e crianças em hoteis cinco estrelas, hoteis-fazenda, dá prêmios, promove esportes e tudo o mais, para despertar entusiasmo neles e motivá-los a trabalhar. E o Zelão, que não tem nada disso? E aí, Zelão, de onde vem essa coragem, essa persistência, esse entusiasmo? (Ele nunca ouviu falar no maior vendedor do mundo, o americano Frank Bettger, que no começo do século vinte animava seus colegas com cara de apatia e tristeza ensinando: “sem entusiasmo não se faz nada. Para ficar entusiasmado, obrigue-se a agir com entusiasmo. O entusiasmo supera a preguiça e vence o medo, contagia as pessoas que o cercam e dá uma sensação de euforia. Pode bem ser que revolucione toda a sua vida”). - Bestera.Tem que trabaiá, argumenta Zelão.
Domingo, dia de futebol. Aos 61 anos, corre três horas atrás da bola, no campo do Jardim São Nicolau, zona leste de São Paulo. Joga no segundo time e no primeiro. Sobram gritos em campo para animar os colegas e gritar gol. Antes de começar a andar, você engatinhava muito? Quantos quilômetros você engatinhou, antes de começar a ficar de pé? Ôpa, é isso mesmo. Pode crer. Dor nas pernas, cansaço, preguiça, falta de fôlego? Nada. Em que você pensa quando anda, anda, anda, anda? Em milhões de coisas. Penso em mim, na minha vida, em comprar casa, pôr dinheiro no banco, me casar com a minha noiva, já estou há muito tempo com ela, limpar o alho, tirar a casca, a palha, cortar o talo, correr atrás. Quantas horas você anda por dia? Quatro horas. (35 anos são 12.600 dias ou 50.400 horas a andar).
Castigo de Deus – Na sua igreja presbiteriana do Jardim São Nicolau, Zelão ouve falar do castigo que Deus infligiu a Adão – ganhar a vida com o suor do próprio rosto – por ter dado ouvido às maldades de uma serpente e abocanhado uma miserável de uma maçã. Bestera. Tem que trabaiá. Você acha que Deus está te castigando, te obrigando a suar desse jeito para ganhar o pão, só porque um homem que muitos não acreditam que existiu andou transando no meio do mato com uma garota chamada Eva? Bestera. Tem que trabaiá. Como você começou? - O cumpadi chegô e falô: vamu trabaiá? Fumu, ele parô, eu cuntinuei. Como vão as vendas? Sobe, cai, vende bem, vende nada. Não vende aqui, vende lá. A mulherada reclama muito, do alho, do preço? Alho chileno é o melhor, mais caro. Nacional é barato, pequeno, não dá gosto. Assim mesmo, muié fala muito, né? Chuva, sol, frio, calor? Nada me mete medo. Zelão, você sabe para quê o alho faz bem? Zelão, não. É José Ovídio Filho.
O vendedor de saúde - Você sabe para quê o alho faz bem? O quanto de saúde você já deixou nas mesas das suas freguesas com os seus 2 milhões e 500 mil gritos até agora? Bom para temperar comida, para resfriado, afinar o sangue. Como é que você sabe? A gente vê na televisão.Você faz ideia, Zelão, o quanto teu coração de 15 anos tem espalhado de saúde por aí? Alho não é bom para quem tem pressão baixa. (Alguns dizem que é bom). Quem te disse? A gente vê na televisão. Sem querer te ensinar nada, eu também vi na televisão e num livro, parece que o alho, pelo que dizem, é milagroso. Os amigos se aproximam na frente do seu prédio, o Alfazema. O olhar de Zelão está parado, meu olhar está parado, os olhares de todos estão parados. Um lembra com um fio de voz que os que têm pressão alta ficam com a pressão boa o dia inteiro se usarem um colar feito de dentes de alho. Viu na televisão um médico recomendar o colar. Hora da foto. Foto? Não. Pedi uma mísera foto do Zelão de costas, com pose de andar. Também não. Hora de dormir. Amanhã, e até quando Deus chamar, haja grito, quanto chão. Diz que anda 6 quilômetros por dia. São 12 mil metros. Cada passo que ele dá é meio metro. Então, ele vai dar amanhã 24 mil passos. É isso? Em 35 anos, quantos passos? Calculadora, por favor. Foram 30 milhões e 240 mil passos. E 420 pares de chinelos consumidos nesse tempo, um a cada três meses – 12 por ano.
* Apóllo Nátali é jornalista e escritor.
Vendedor de alho. Foto: Wagner Swerts Tambur
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