SUPREMOCRACIA
"A divergência e a oposição no direito não são condições ocasionais, mas sim necessárias, sob pena de direitos fundamentais da sociedade democrática irem para o ralo. (...)
O Tribunal, portanto, mais do que qualquer outro lugar social, deve ser o ambiente da cortesia e do respeito. Arrogâncias e incivilidades devem ser tidas não como meras deselegâncias mas como comportamentos juridicamente ilícitos, sujeitos a sanções legais, sob pena de inviabilizar a função republicana da jurisdição, impedindo a sua realização em padrões minimamente civilizados e éticos. (...)
Mais do que um problema em si, a falta de bons modos em nossos tribunais me parece um sintoma de um mal maior. O Judiciário, dos Poderes da República, é o mais infenso às mudanças democráticas que se realizam no Estado e na sociedade brasileira. (...)
A sensação de impunidade e intangibilidade a críticas mais amplas é tanta que até o despudor do xingamento público em cadeia nacional é aceito em nossa Corte maior como ocorrência natural, desmerecedora de reprovação.
O maior problema da ofensa a um colega em um Tribunal não é o vilipêndio a um companheiro de profissão, numa perspectiva corporativa, muitas vezes equivocadamente argumentada. Mas sim a desconsideração da dignidade do colega, a ofensa ao outro em sua condição humana , sua humilhação pública e perversa."
Judiciário
A cortesia nos tribunais
Por que as descortesias de Joaquim Barbosa são festejadas pelos setores mais grotescos do ambiente social?
Pedro Serrano
Agência Brasil
Os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski
A etiqueta, conjunto de regras relativas aos modos de convivência cotidiana, é uma construção cultural do início da sociedade moderna, conforme ensina o filósofo político Renato Janine Ribeiro, um dos mais relevantes intelectuais do Brasil de nossos dias.
A partir do estudo histórico do fenômeno, o professor da USP aponta duas ideias centrais que integram o conceito. Como ressalta o filósofo, a humanidade penou para superar seus modos rústicos e de expressão agressiva e construir um procedimento de condutas e gestos centrados nos valores da urbanidade e civilidade.
Essa primeira ideia tem como núcleo o respeito de um pelo outro; reflete a noção de que todos nós, seres humanos, somos iguais em essência. Por meio do trato educado em relação ao outro, demonstramos, em pequenos gestos, que por mais valência que tenha nossa posição social, ela nunca é motivo justificador da arrogância e da desconsideração do outro.
Tem-se assim etiqueta como uma “pequena ética”, o reconhecimento por gestos e posturas do outro como ser portador de dignidade humana, não por conta de suas condições materiais ou de poder, mas pelo simples fato de pertinência à espécie humana.
Neste aspecto não é nada relevante o conhecimento de regras específicas de conduta, quais talheres escolher a mesa ou como proceder num serviço a francesa, e sim demonstrar respeito, preocupar-se com os sentimentos alheios, buscar combater a arrogância e a prepotência em suas próprias atitudes, com vistas à observância do valor geral da dignidade como parâmetro das relações humanas, tanto no grande evento social, histórico ou político, quanto na microfísica do cotidiano.
O ser verdadeiramente ético não seleciona apenas o olhar público ou os grandes atos como locus exclusivo da vivência dos valores que postula.
As regras dos talheres, do RSVP, dos trajes adequados, em geral e em especial, quando descoladas dos valores referidos, traduzem a segunda ideia que o professor Janine Ribeiro postula como inerente ao conceito de etiqueta, qual seja distinguir entre as classes e segmentos sociais, criar símbolos gestuais de pertencimento às elites, distinguindo seus integrantes do restante da comunidade humana. Reflexo, portanto, de valores antagônicos ao da “pequena ética” da primeira ideia, uma etiqueta aristocrática da desigualdade em oposição à etiqueta democrática da celebração da dignidade humana.
Em minha atividade profissional, a das lides nos tribunais, a questão da etiqueta se intensifica.
Por todo meu meio século de existência ouvi de amigos profissionais de outras áreas de saber, e mesmo de colegas, críticas incisivas ao modo exageradamente formal de trato entre os profissionais do direito.
Se em certa dimensão a crítica é correta, por outro lado deixa às vezes de levar em consideração aspectos específicos da operação com o direito e seus litígios, que tornam a cortesia mais do que uma saudável e ética regra de convivência, numa verdadeira exigência de salubridade no exercício profissional.
O profissional do direito é o único que tem um colega seu pago para descontruir seu trabalho traduzido em argumentos, seja na disputa entre promotor e advogado na causa, seja no debate entre julgadores num tribunal (do colegiado democrático se espera mais a divergência que o consenso).
Nem o médico nem o historiador nem o filósofo nem o engenheiro passa por isso.
Podem argumentar que no mundo acadêmico a divergência e o debate são inerências da atividade. Mas a divergência aí, por mais cotidiana, é decorrência ocasional de enfoques ou raciocínios diversos, e não um pressuposto.
A divergência e a oposição no direito não são condições ocasionais, mas sim necessárias, sob pena de direitos fundamentais da sociedade democrática irem para o ralo.
O Tribunal, portanto, mais do que qualquer outro lugar social, deve ser o ambiente da cortesia e do respeito. Arrogâncias e incivilidades devem ser tidas não como meras deselegâncias mas como comportamentos juridicamente ilícitos, sujeitos a sanções legais, sob pena de inviabilizar a função republicana da jurisdição, impedindo a sua realização em padrões minimamente civilizados e éticos.
Infelizmente não é o que se tem observado nos Tribunais brasileiros. Várias foram as notícias de agressões, inclusive físicas, entre promotores e advogados em Juris midiáticos. Mesmo quando a violência física não se faz presente é de estarrecer os xingamentos e maus modos que vão sendo placidamente aceitos em nossas Cortes.
São mais do que públicas as deselegâncias do presidente de nossa Corte Suprema com outros ministros, por apenas divergir de seu entendimento, e também com outros magistrados, advogados e jornalistas.
Mais do que um problema em si, a falta de bons modos em nossos tribunais me parece um sintoma de um mal maior. O Judiciário, dos Poderes da República, é o mais infenso às mudanças democráticas que se realizam no Estado e na sociedade brasileira.
Ninguém gosta de criticar juiz, advogado ou promotor. O mais honesto entre os homens pode amanhã se ver envolvido numa acusação injusta ou conflitar com terceiros e depender da ação desses profissionais para que a injustiça não o prejudique.
Em nossa tradição aristocrático-patrimonialista de Estado, criticar autoridades e profissionais tão relevantes pode ser o caminho para o dissabor.
Já o deputado ou o chefe do executivo dependem do voto e, como tal, são naturalmente mais sujeitos à crítica, seja pela disputa eleitoral, seja porque não podem se dar ao luxo da antipatia.
A sujeição à critica não tem sido suficiente para resolver graves problemas de nossas esferas estritamente políticas, mas pelo menos suas mazelas são de todos conhecidas. O mesmo não corre com a chamada “caixa-preta” de nossas instituições e corporações jurídicas.
A sensação de impunidade e intangibilidade a críticas mais amplas é tanta que até o despudor do xingamento público em cadeia nacional é aceito em nossa Corte maior como ocorrência natural, desmerecedora de reprovação.
O maior problema da ofensa a um colega em um Tribunal não é o vilipêndio a um companheiro de profissão, numa perspectiva corporativa, muitas vezes equivocadamente argumentada. Mas sim a desconsideração da dignidade do colega, a ofensa ao outro em sua condição humana , sua humilhação pública e perversa.
Pior que isso, a descortesia tem sido festejada em setores mais grotescos do ambiente social como prática moralista, a ira combatente do mal.
Confirma minha impressão de sempre: o sentimento moralista nunca é irmão da ética e da dignidade. Só gemina com o adubo da hipocrisia.
Neste aspecto não é nada relevante o conhecimento de regras específicas de conduta, quais talheres escolher a mesa ou como proceder num serviço a francesa, e sim demonstrar respeito, preocupar-se com os sentimentos alheios, buscar combater a arrogância e a prepotência em suas próprias atitudes, com vistas à observância do valor geral da dignidade como parâmetro das relações humanas, tanto no grande evento social, histórico ou político, quanto na microfísica do cotidiano.
O ser verdadeiramente ético não seleciona apenas o olhar público ou os grandes atos como locus exclusivo da vivência dos valores que postula.
As regras dos talheres, do RSVP, dos trajes adequados, em geral e em especial, quando descoladas dos valores referidos, traduzem a segunda ideia que o professor Janine Ribeiro postula como inerente ao conceito de etiqueta, qual seja distinguir entre as classes e segmentos sociais, criar símbolos gestuais de pertencimento às elites, distinguindo seus integrantes do restante da comunidade humana. Reflexo, portanto, de valores antagônicos ao da “pequena ética” da primeira ideia, uma etiqueta aristocrática da desigualdade em oposição à etiqueta democrática da celebração da dignidade humana.
Em minha atividade profissional, a das lides nos tribunais, a questão da etiqueta se intensifica.
Por todo meu meio século de existência ouvi de amigos profissionais de outras áreas de saber, e mesmo de colegas, críticas incisivas ao modo exageradamente formal de trato entre os profissionais do direito.
Se em certa dimensão a crítica é correta, por outro lado deixa às vezes de levar em consideração aspectos específicos da operação com o direito e seus litígios, que tornam a cortesia mais do que uma saudável e ética regra de convivência, numa verdadeira exigência de salubridade no exercício profissional.
O profissional do direito é o único que tem um colega seu pago para descontruir seu trabalho traduzido em argumentos, seja na disputa entre promotor e advogado na causa, seja no debate entre julgadores num tribunal (do colegiado democrático se espera mais a divergência que o consenso).
Nem o médico nem o historiador nem o filósofo nem o engenheiro passa por isso.
Podem argumentar que no mundo acadêmico a divergência e o debate são inerências da atividade. Mas a divergência aí, por mais cotidiana, é decorrência ocasional de enfoques ou raciocínios diversos, e não um pressuposto.
A divergência e a oposição no direito não são condições ocasionais, mas sim necessárias, sob pena de direitos fundamentais da sociedade democrática irem para o ralo.
O Tribunal, portanto, mais do que qualquer outro lugar social, deve ser o ambiente da cortesia e do respeito. Arrogâncias e incivilidades devem ser tidas não como meras deselegâncias mas como comportamentos juridicamente ilícitos, sujeitos a sanções legais, sob pena de inviabilizar a função republicana da jurisdição, impedindo a sua realização em padrões minimamente civilizados e éticos.
Infelizmente não é o que se tem observado nos Tribunais brasileiros. Várias foram as notícias de agressões, inclusive físicas, entre promotores e advogados em Juris midiáticos. Mesmo quando a violência física não se faz presente é de estarrecer os xingamentos e maus modos que vão sendo placidamente aceitos em nossas Cortes.
São mais do que públicas as deselegâncias do presidente de nossa Corte Suprema com outros ministros, por apenas divergir de seu entendimento, e também com outros magistrados, advogados e jornalistas.
Mais do que um problema em si, a falta de bons modos em nossos tribunais me parece um sintoma de um mal maior. O Judiciário, dos Poderes da República, é o mais infenso às mudanças democráticas que se realizam no Estado e na sociedade brasileira.
Ninguém gosta de criticar juiz, advogado ou promotor. O mais honesto entre os homens pode amanhã se ver envolvido numa acusação injusta ou conflitar com terceiros e depender da ação desses profissionais para que a injustiça não o prejudique.
Em nossa tradição aristocrático-patrimonialista de Estado, criticar autoridades e profissionais tão relevantes pode ser o caminho para o dissabor.
Já o deputado ou o chefe do executivo dependem do voto e, como tal, são naturalmente mais sujeitos à crítica, seja pela disputa eleitoral, seja porque não podem se dar ao luxo da antipatia.
A sujeição à critica não tem sido suficiente para resolver graves problemas de nossas esferas estritamente políticas, mas pelo menos suas mazelas são de todos conhecidas. O mesmo não corre com a chamada “caixa-preta” de nossas instituições e corporações jurídicas.
A sensação de impunidade e intangibilidade a críticas mais amplas é tanta que até o despudor do xingamento público em cadeia nacional é aceito em nossa Corte maior como ocorrência natural, desmerecedora de reprovação.
O maior problema da ofensa a um colega em um Tribunal não é o vilipêndio a um companheiro de profissão, numa perspectiva corporativa, muitas vezes equivocadamente argumentada. Mas sim a desconsideração da dignidade do colega, a ofensa ao outro em sua condição humana , sua humilhação pública e perversa.
Pior que isso, a descortesia tem sido festejada em setores mais grotescos do ambiente social como prática moralista, a ira combatente do mal.
Confirma minha impressão de sempre: o sentimento moralista nunca é irmão da ética e da dignidade. Só gemina com o adubo da hipocrisia.
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