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terça-feira, 17 de maio de 2011

O horror glamurizado de um jornalismo sem jornalistas

Nietzsche online


29/04/2011

O fantástico da Internet é que ela permite que as narrativas sobre os acontecimentos se deem em concomitância com estes – ou quase isso.  Guardadas as devidas proporções de tempo, nos anos de 1870 Nietzsche observou essa característica dos “tempos modernos”, referindo-se especificamente aos jornais. Ele comentou que nem bem uma guerra havia produzido seus primeiros mortos e os cadáveres apareciam nos jornais como história. E lembrou, é claro que em forma de chiste, que os periódicos não poderiam dizer a verdade porque eles sempre tinham mais ou menos o mesmo número de páginas, ao passo que o número de acontecimentos sempre estaria variando. Nietzsche escreveu isso em aforismos e, também, em um texto que os scholars qualificam como “de juventude”, uma das Extemporâneas.

Naquela época, Nietzsche avaliou que tal prática acentuava ainda mais um clima de época: a predominância do historicismo. (1) Nada teria mais presente. Tudo ganharia uma conotação histórica tão logo viesse a ocorrer. Aos poucos, então, haveria um número cada vez maior de pessoas predispostas a antes viver a história de outros, como espectadores, que viver suas próprias vidas. O “mundo da hegemonia das imagens (instantâneas)”, como é possível denominar o nosso mundo hoje, foi tomado por Nietzsche, há mais de cem anos, como uma verdadeira vítima do historicismo e, enfim, da “cultura filisteia”.

A cultura filisteia, como Nietzsche a viu e a caracterizou, viria como um subproduto negativo do historicismo. Seria a transformação da cultura em um tipo de “sobrecasaca burguesa”, um capote de frio que é vestido para se locomover ao serviço, mas não para ficar em casa. Um exemplo disso, citado por Nietzsche, foi o do filósofo que, transformado em funcionário público – em professor –, nada teria mais a fazer nas suas aulas senão contar a história da filosofia, entupido de erudição, mas incapaz de assumir qualquer das doutrinas ensinadas como algo para a condução de sua própria vida. É claro que o bom professor de filosofia não seria o real filisteu da cultura, aquele que, por exemplo, compra livros para ter uma biblioteca, e não para lê-los e segui-los. Mas, uma coisa atrairia a outra: uma universidade baseada na ideia de que a vida só precisa ocorrer para ser rapidamente registrada em história, já não seria uma universidade em favor do ensino e da pesquisa e, sim, um campo de extensão do jornalismo – um jornalismo irreflexivo à medida que aturdido pelo excesso de informação.

É claro que, com algum bom senso, podemos dizer que vivemos hoje esse mundo denunciado por Nietzsche. Quem duvidaria disso? No entanto, nosso filósofo, uma vez aqui hoje, não deixaria de ter seu Facebook, seu twitter e seu blog. Para um intelectual como Nietzsche, predisposto aos escritos aforismáticos e a certo gosto pelas metáforas, pela alusão às imagens, esses instrumentos não ficariam encostados. Nietzsche foi um conservador, é claro, mas não um passadista tolo. Ele tinha lá sua máquina de escrever e, de modo algum, achava que deveria dispensá-la em favor da escrita cursiva. Sem dúvida, Nietzsche, hoje, estaria longe de ter de se educar em programas governamentais de “inclusão digital”, que abocanharam vários professores universitários no Brasil. Mas, vivo hoje, ele saberia muito bem que aquilo que foi denunciado por ele há mais de um século, agora, é antes a regra para todos, e não apenas um clima posto somente entre as elites informadas. Mais que qualquer pessoa, ele entenderia a fundo a natureza de nossa época.

Todos nós sabemos bem que, dentro de qualquer evento, revolucionário ou corriqueiro, de protesto ou de entretenimento, moral ou exclusivamente estético, não raro as pessoas nem mesmo se preocupam em fazer o evento acontecer e, sim, em colocar seus celulares em disposição de registrar o momento. Os grandes eventos se tornam “maquinais”, eles têm um caminho próprio e são desencadeados e levados adiante por poucos, bem assessorados por máquinas (bandas eletrônicas ou dispositivos com telões e palavras de ordem vindas de situações já gravadas), e as pessoas, em meio ao que ocorre, se fotografam ou se filmam e de imediato distribuem tais imagens pela Internet. Outros, que continuam trabalhando na linha de produção, há milhares de quilômetros, olham de relance seus próprios celulares ou, então, telões ou pequenas TVs, e “ficam sabendo” de tudo. Tudo nem é mais informação. Tudo é história. Ou seja, na época do “fim da história” o que ocorre é a saturação da história. Um casaco continua a ser produzido na linha de produção de uma fábrica brasileira ao mesmo tempo em que uma jornalista é mostrada na tela sendo violentada em uma multidão no Egito e, também ao mesmo tempo, Cristiano Ronaldo aparece para fazer uma gracinha sem graça em campo. Todos são jornalistas de si mesmos. Antes passar a imagem, para que alguém tome providências (que nunca virão, pois do outro lado todos só assistem), ou para que alguém “também curta”, que intervir na situação, para o bem ou para o mal.

A regra de conseguir o “eu estava lá” só vale se eu registro no celular o evento. Mas, antes que registrar, o que preciso fazer é disponibilizar a imagem na Internet imediatamente, para que o mundo diga que “eu estou lá”. Caso o mundo não possa, instantaneamente, me ver “lá”, eu mesmo não saberei onde estou. Então, o celular em punho é minha atividade. Posso estar num baile, dançando com a homenageada (ou uma moça qualquer), mas um dos braços não está nela e, sim, esticado, servindo de apoio para o celular que nos transmite dançando para o mundo (ou quase dançando, pois é estranho dançar com um braço esticado). Isso sem contar as inúmeras cenas de sexo que são jogadas instantaneamente para a Internet, cenas que acabam não raro ocorrendo com dificuldade, caso eu não pare de acertar o celular, tentando achar o meu melhor ângulo de coito.

Walter Benjamin escreveu que os que voltavam da Primeira Guerra Mundial não tinham histórias para contar, diferente dos que haviam voltado das guerras anteriores. A Primeira Guerra havia sido a guerra das máquinas, da morte sem glória, do puro extermínio, do desaparecimento até mesmo dos restos mortais. A Primeira Guerra já foi uma guerra onde a propaganda e o jornais, criando a história no momento mesmo de sua ocorrência, ocupou o espaço das histórias antes que elas pudessem ser contadas pelos que seriam seus protagonistas. E elas não foram contadas, depois que os soldados voltaram. Eles haviam tido o experimento da guerra, mas não a experiência da guerra, não a vivência. Nossas guerras atuais mostram isso. Quem volta não conta a história, pois o que se faz é ligar o celular de modo a deixar que, em qualquer lugar, cada um possa ver o horror instantâneo e, portanto, se acostumar com todo e qualquer horror.

Walter Benjamin foi o primeiro a ver que esse tipo de mundo era aquele de seu tempo, em que uma foto que apresenta horrores pode ser vista por alguém que, enfim, exclama: “nossa, que linda foto”. O horror não mais choca, pois tudo tem um caráter estético, tudo é para informar e ser objeto de deleite ou de julgamento moral apressado – uma época em que a denúncia do preconceito só é regra porque o preconceito é o que há de mais atual. Nada é vivo, tudo é só imagem. Nada é para ocorrer, tudo é para ver. Um clima de hiperhistoricismo se consubstancia por meio de um clima de abundância jornalística. Um jornalismo sem jornalistas, só com repórteres – todos os nós. Conectadíssimos!

Essa ideia de que todos nós seríamos Big Brothers de nós mesmos e que, além disso, faríamos tudo se transformar em espetáculo, se realizou. Ela parece ser positiva para nós. Mas, quando vemos Nietzsche analisá-la em sua forma embrionária, podemos perceber sua essência. Só assim a entendemos.

Marx nos ensinou a ver o que ocorreria no século XX e, é claro, o que continua ocorrendo no século XXI quanto às revoluções e guerras. Mas Nietzsche, logo em seguida de Marx, nos deu as pistas para entendermos nossas atitudes no interior desses movimentos, como estamos fazendo agora. Marx foi o filósofo que mostrou como poderia ser o conteúdo das imagens desse nosso tempo. Nietzsche foi o filósofo que mostrou como poderia ser a forma das imagens desse nosso tempo. E com um detalhe, em nosso tempo, às vezes a forma faz o conteúdo! Marx tinha certeza que a modernização continuaria a fazer as coisas mais sólidas se desmancharem no ar. Nietzsche intuiu que cada etapa dessas coisas sólidas, uma vez se desmanchando no ar, seria notícia em cada celular.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr. Filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
(1)    Ghiraldelli Jr, P. A aventura da filosofia – de Heidegger a Danto. Editora Manole: Barueri-SP, 2011, vol. II


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