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segunda-feira, 4 de março de 2013

Eliana Calmon explica os $ 84 mil de "auxílio-alimentação"


ENTREVISTA


Os "Bandidos de Toga" gostariam que com a aposentadoria, em 2014, ela fosse para casa, vestisse pijama, calçasse pantufas e ficasse quieta, brincando com o neto... Mas a intrépida ministra Eliana Calmon, ex-corregedora do CNJ e atual diretora-presidente da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e vice-presidente em exercício do Superior Tribunal de Justiça, ainda tem muito a colaborar com o País, sobretudo para a reforma e democratização do Judiciário, cujas mazelas ela tão bem conhece.

Na entrevista à Tribuna da Bahia, Eliana Calmon fala do seu polêmico e inesquecível trabalho à frente da Corregedoria, de aposentadoria, de seu eventual ingresso na política, e explica os R$ 84 mil recebidos a título de auxílio-alimentação, que lhe renderam muitas críticas.


                                                                                                               CNJ

Ministra Eliana Calmon critica Justiça da Bahia e admite ingressar na política

Osvaldo Lyra


           A ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon

Antes mesmo de a entrevista começar, a ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, fez questão de frisar sua condição de magistrada, não de política. Apesar de ter recebido mais de um convite para participar da política – o último feito publicamente pelo governador de Pernambuco, Eduardo Campos –, a ex-corregedora do Conselho Nacional de Justiça refuta qualquer possibilidade de ingressar na seara política em 2014. Em 2018, porém, ela não descarta. “Para eu entrar na política, aposentada, eu poderia pensar só para 2018”, aponta Eliana.

Mulher de pulso firme, que revelou bastidores da estrutura do Judiciário brasileiro, em entrevista à Tribuna a ministra admite que ganhou desafetos, mas prefere encarar a passagem pela corregedoria pela transformação que aconteceu. “O saldo foi positivo, na medida em que eu dei visibilidade à corregedoria, em razão da contestação da exposição das minhas posições”. Por fim, destacou: “Eduardo Campos assanhou os baianos, não foi? Eu gostaria, inclusive, de dizer o seguinte: eu sou magistrada, eu não sou candidata, eu não sou política”, assegura.

Tribuna – Ministra, a gente está no mês da mulher, agora em março. Como a senhora avalia a participação da mulher no cenário político e no centro de decisão do país? Há muito o que avançar?


Eliana Calmon –
Ainda há muito o que avançar. Nós temos uma presidente mulher, nós já temos ministras no Supremo Tribunal Federal, aumentamos consideravelmente o número de mulheres nos tribunais superiores, mas ainda vai ter muito o que avançar, porque isso é uma questão de tempo. Mas nós temos que acelerar um pouco essa mudança, o poder ainda é masculino.

Tribuna – Como a senhora avalia a sua passagem pela Corregedoria Nacional de Justiça, entre 2010 e 2012?


Eliana –
Foi uma passagem um pouco tumultuada, mas eu acho que o saldo foi positivo, na medida em que eu dei visibilidade à corregedoria, mais do que tinha dado o meu antecessor, o ministro Gilson Dipp, em razão da contestação da exposição das minhas posições. Todas eram posições mais modernas, de abertura, de transparência, e isso fica demonstrado e constatado depois da decisão do Supremo Tribunal Federal. A minha luta maior foi para manter o poder disciplinar da corregedoria íntegro, sem haver a passagem pelas corregedorias estaduais, o que nós sabíamos que era uma dificuldade para chegar, uma dificuldade para chegarem os processos até o CNJ. De forma que eu reputo todos os problemas que eu tive, dentro da corregedoria, exatamente em razão desse processo. E, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, todas as coisas começaram a entrar nos seus devidos lugares, daí porque eu acho que a minha passagem pela corregedoria foi importante, na medida onde houve essa abertura. E outro aspecto muito interessante também foi que, em razão da resistência que fizeram às minhas posições, pelo próprio presidente do CNJ e pelas corregedorias – e isso é um fato corriqueiro porque foi amplamente noticiado pela imprensa –, terminou por haver uma manifestação popular muito extensa. As redes sociais se apropriaram do CNJ e começaram a defender a corregedora – a corregedoria, leia-se Conselho Nacional de Justiça. E isso foi uma prova de cidadania, isso foi uma prova de democracia. Daí porque eu entendo que, com todas as minhas limitações, a minha passagem pela corregedoria marcou ponto.

Tribuna – Ficaram traumas do período em que a senhora conduziu com tanto rigor as inspeções disciplinares nos tribunais de todo o país?


Eliana –
Não. Pelo que eu notei, houve, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, da abertura dada pelo Supremo Tribunal Federal, uma revisão crítica da minha atuação. Se o Supremo Tribunal Federal não tivesse decidido como decidiu, eu acho que eu passaria para a história como uma radical e que não tive sucesso. Em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal, foi possível que os tribunais fizessem uma reavaliação da minha atuação e eu terminei tendo razão porque eles me deram razão.

Tribuna – A senhora ganhou desafetos, sobretudo dos próprios colegas magistrados, devido à busca da senhora por uma maior moralidade da coisa pública?


Eliana –
Uns poucos. Eu acho que eu fiquei mais conhecida pela magistratura e fiquei mais admirada do que odiada. Naturalmente, parte da magistratura me considera deletéria, porque acha que eu diminuí a magistratura, mas essa parte é uma parte mínima, de alguns que são corporativistas por ideologia – é uma questão de ideologia. Porque o corporativismo é uma espécie de ideologia e a ideologia é algo que corrói, é algo que limita a visão. Quem é corporativista termina tendo antolhos, para não ver que as coisas mudam, de forma que essa parte da magistratura é uma parte bem pequena, não é tão significativa. Eu não me sinto incomodada dentro da magistratura. Eu me sinto mais prestigiada agora do que antes de ser corregedora.

Tribuna – O convite feito pelo governador de Pernambuco, Eduardo Campos, convidando a senhora para entrar no PSB, convidando a senhora para entrar num partido político, a senhora aceita o convite?


Eliana –
Eu sou uma magistrada. Eu me preparei a vida inteira para ser magistrada e para exercer a magistratura, que, sem dúvida alguma, é uma atividade política. Porque eu faço parte de um Poder da República. É uma atividade política, só que é uma atividade política diferenciada, não tem militância partidária, está equidistante de partidos. Esse convite, eu fiquei até lisonjeada. Igual convite também foi feito pelo PPS. O PPS propôs a outorga de uma medalha, a segunda medalha de Mérito Legislativo que eu tive, e, a partir daí, eles me convidaram para eu tomar um café com eles, na Câmara dos Deputados, eu fui e lá eles formularam um convite, para eu também ingressar no partido. O convite mais sintomático foi o do governador Eduardo Campos porque ele fez publicamente. O outro fez em uma sala, onde eu estava com a liderança do partido. O governador Eduardo Campos foi mais afoito e ele fez isso publicamente. Eu me sinto lisonjeada do meu nome ser lembrado, eu considero muito o governador Eduardo Campos. Aliás, trabalhei com ele, eu tive oportunidade de trabalhar com ele porque ele tem um programa de governo muito interessante, que é o programa Pacto pela Vida, e ele estava muito preocupado com a criminalidade de Pernambuco. Ele me disse que fiscaliza pessoalmente a questão da criminalidade. E nós estávamos com uma vara, com uma comarca com um grande déficit de prestação jurisdicional, e ele me pediu ajuda. E nós trabalhamos juntos. Eu disse: “eu vou fazer com que essa comarca comece a funcionar, mas eu vou precisar da ajuda de Vossa Excelência”. Ele disse: “O que a senhora precisar, pode contar comigo”. Eu coloquei um juiz auxiliar dentro dessa comarca e ele deu todos os meios necessários e, a partir daí, surgiu uma admiração, eu admirada com ele, de um governador se preocupar especificamente com esta situação, e ele por mim, porque ele achou que eu fui muito disposta. Eu trabalhei na corregedoria com muito arrojo, porque eu acreditava naquele trabalho. E talvez esse convite seja em razão dessa simpatia nascida desse trabalho conjunto. É exatamente isso, eu me sinto lisonjeada, mas é um convite que uma magistrada não pode aceitar. Eu não posso aceitar abrir mão imediatamente da magistratura, e eu tenho uma responsabilidade perante o meu tribunal que é, justamente, a Escola da Magistratura.

Tribuna – Ele cogitou a possibilidade da senhora sair candidata ou ao governo ou à cadeira para o Senado, pelo PSB. A senhora acredita que, depois da magistratura, isso poderia se tornar realidade?


Eliana –
Veja bem o que acontece. Eu vi isso pelos jornais, o governador não me procurou. Em nenhum momento, eu não tive nenhum contato com ele, isso só foi arroubo de palanque, como os jornais noticiaram. Eu sorri, mas, eu me aposento em novembro de 2014 e em novembro de 2014 eu já não tenho mais espaço para filiação partidária, em compatibilidade, essas coisas. Eu acho que algum pensamento meu que seja assim para eu entrar na política, aposentada, eu poderia pensar em entrar para a política só para 2018.


Tribuna – Então não há possibilidade nenhuma da senhora deixar a magistratura para enveredar pelo campo político partidário?


Eliana –
Eu não tenho vontade. Como eu dei uma entrevista essa semana, na TV Senado, e disse: é a minha casa, eu sei fazer isso, eu me preparei a vida inteira para fazer isso e sair da magistratura para entrar na política é como dar um salto no escuro. E o meu medo é que eu entre numa roda e, como uma falsa baiana, não saiba sambar.

Tribuna – O ingresso da senhora não ajudaria a elevar o nível da política brasileira, sobretudo da política da Bahia?


Eliana –
Muita gente, inclusive alguns baianos amigos meus, tem me telefonado, dizendo que existe uma responsabilidade cívica das pessoas ingressarem na política para começarem a mudar o perfil da grande massa política. E começar a haver quase que uma seleção, porque os bons políticos que já ingressaram na política, com o ingresso de pessoas com as quais elas se alinhem, se afinam, faria a separação do joio e do trigo. Se alinhariam com esses novos nomes, nomes que a sociedade tem como ícone, etc., e aí construiríamos uma nova classe de políticos. Veja bem, não é que não tenha corretos. Mas está tudo misturado. No momento que nomes de peso nacional chegarem como novidade e a sociedade reconhecendo que são pessoas corretas, esses políticos já existentes sairiam para uma aliança com estes novos e aí nós íamos ver o joio e o trigo. Isso foi dito, eu achei muito ponderada a ideia, mas eu tenho uma profissão que não me permite fazer incursões políticas sem haver essa detecção. Eu tenho que me aposentar primeiro para depois ingressar na política.

Tribuna – Saiu na imprensa que a senhora recebeu, em setembro do ano passado, de uma só vez, R$ 84 mil a título de auxílio alimentação. Existe algum fundamento?


Eliana –
Existe. Eu inclusive cheguei a fornecer o próprio contracheque para “O Estado de S. Paulo”, porque não foi nenhuma mentira. Não vou tomar nenhuma iniciativa quanto a isso porque foi um pagamento atrasado e que todos os ministros receberam. Isso foi um benefício dado pelo Conselho Nacional de Justiça, depois chancelado pelo Conselho da Justiça Federal, para os juízes federais e, a partir daí, isso retroagiu até a data do pedido, porque, se é um direito reconhecido pelo CNJ, este direito retroage à data do requerimento. Quero dizer, inclusive, que eu votei contra, na sessão administrativa da qual eu fiz parte, eu votei contra o pagamento dos atrasados, porque eu entendi que era uma soma muito grande. O meu entendimento é de que deveriam pagar a partir da data da decisão do CNJ, do reconhecimento do CNJ aderir ao pagamento da ação. Tudo muito bem, eu fui voto vencido – estou até pegando o processo para fazer levantamento e, se alguém tiver dúvida, eu mostro que a minha decisão foi contrária a esse pagamento retroativo. E esses R$ 84 mil é porque eles retroagiram cinco anos. Agora, eu quero dizer que foi uma parcela que todos receberam. Não foi Eliana Calmon que recebeu. Não tinha nem motivo para isso, porque aqui nós temos a identidade.

Tribuna – O direcionamento da divulgação desse benefício para a senhora pode ser considerada uma retaliação de parte da imprensa ao movimento que a senhora fez de moralização?


Eliana –
Eu não sei bem, porque o jornalista que assina o artigo é um jornalista que acompanhou todo o movimento da corregedoria e ele sabe das dificuldades que eu passei, mas, na realidade, chegou às mãos dele por alguém de dentro do Judiciário, porque quando eu mandei os meus contracheques para ele, para constatar, ele já os tinha. Então foi alguém que teve acesso aos documentos aqui no tribunal e mandou para o jornal.

Tribuna – Como a senhora avalia o Judiciário da Bahia e o que deve ser imediatamente mudado na visão da senhora?


Eliana –
O Judiciário da Bahia não é bom. Isso é constatado pelo povo brasileiro, ele não está bom. Ele está moroso, o tribunal está defasado da realidade, a administração é muito... ela está uma administração caótica, porque nenhuma das metas propostas pelo CNJ tem sido seguida. Está faltando muito magistrado, dificuldade de se fazer concurso, a questão dos custos extrajudiciais é uma coisa terrível, o povo baiano está sofrendo muito com a questão dos extrajudiciais, por não gerência do tribunal. Isso é uma questão que vem de muitos anos, longos anos, essa falta de gestão no tribunal da Bahia. Por isso a Justiça não é boa. Agora, isso nós temos batido, o meu antecessor na corregedoria bateu muito para realizar, para mudar. Mudou alguma coisa, mas não mudou o que devia mudar. Portanto, a gestão não é boa. O que é que podia se fazer para melhorar? Imediatamente, uma nova gestão, uma nova cabeça e que se pudesse realmente administrar para resolver esses problemas da magistratura.

Tribuna – Falta vontade política de quem está no comando?


Eliana –
Total falta de vontade política. É como se diz: “Deixe como está porque está bom para nós”. Então não precisa mudar.

Tribuna – Há corporativismo no Tribunal de Justiça da Bahia?


Eliana –
Há sim. Essa resistência a novos caminhos para a administração é uma espécie de corporativismo.

Tribuna – Qual o futuro da senhora depois da aposentadoria?


Eliana –
Eu não sei bem o que é que eu vou fazer. A minha ideia hoje, faltando um ano e meio para a aposentadoria, faltando um ano e oito meses para a aposentadoria, é no sentido de que eu me aloque a alguma ONG para ter uma atividade que dê azo a minha personalidade, que é algo meio instigante, meio investigadora, meio punitiva, isso faz parte da minha personalidade. E aí, eu teria tempo de escrever, de fazer artigos bons e tal, que hoje eu vivo correndo, não tenho tempo de nada. Arrais vive pedindo para eu escrever, dizendo “ministra, escreva” e eu não tenho tempo de escrever.

Tribuna – Qual a mensagem que a senhora deixa para a população da Bahia, que acredita tanto no trabalho e na atuação da senhora?


Eliana -
O que eu digo é o seguinte: eu acho que para a gente ajudar não precisa ser, necessariamente, política. A gente pode ajudar como cidadã brasileira, e eu sou brasileira, mas também sou baiana e não desprezo a minha terra. Estou sempre atenta a tudo que diz respeito à Bahia.


Tribuna – Uma avaliação rápida do governo Wagner e a chegada do prefeito ACM Neto...


Eliana – Todos estão vendo.


Colaboraram: Fernanda Chagas e Fernando Duarte


Tribuna da Bahia

*

"Juízes têm mentalidade pró-impunidade", diz Barbosa


E as associações de magistrados estão protestando após a longa entrevista concedida a jornalistas estrangeiros pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, criticando a mentalidade da magistratura brasileira.

O que o ministro Joaquim Barbosa declarou é gravíssimo. Mas também não chega a ser novidade. Basta olhar a realidade e indagar do povo o que pensa do Judiciário e da administração da Justiça. 

De que lado estão os magistrados brasileiros? 

É preciso aprofundar essa questão, que envolve, claro, o controle do judiciário pelas elites econômicas e outros grupos.

Abaixo trechos selecionados da entrevista.


                                                                    Banco de Imagens/STF


Jornalista – Ministro, a Ação 470 é, sem dúvida, um momento histórico para a Corte, para o próprio país. Mas nós temos aí casos como o do jornalista Pimenta Neves, que assassinou uma pessoa, é réu confesso e, mesmo assim, digamos que goze de certa regalia perante o olhar da opinião pública. A mesma coisa temos o caso Gil Rugai, que acabou sendo condenado, vai recorrer em liberdade. A população começa a sentir, dentro do seu conhecimento, que parece que isso se esfria. Como é que o senhor responde essa ansiedade das pessoas que viram uma condenação histórica e, agora, começa a dar a impressão que não haverá o que elas esperam da Justiça?

Barbosa – Olha, a sociedade brasileira já é muito consciente das incoerências do sistema penal brasileiro. Vejam bem: o senhor mencionou agora o caso Gil Rugai. É um caso que envolve um só réu, uma só pessoa. No entanto, estava esperando julgamento há mais de dez anos. O caso da Ação Penal 470 tinha 40 réus e a imprensa xingou o Supremo, me esculhambou dizendo: “Sete anos! Isso é um absurdo! Como é que dura sete anos?”. Mas não fala uma única palavra quando se trata de casos como esse. Aí é que está o absurdo: julgar um caso simples e levar 10 anos. A população é muito consciente sobre esses contrastes. Por que levar dez anos para julgar um caso tão simples? É por que alguém aí, provavelmente, não estava querendo julgar. Quando há vontade de se julgar, se julga.

Jornalista – Vontade política?

Barbosa – Vontade mesmo de trabalhar e ignorar a qualidade das partes.

Jornalista – Isso poderia ser uma causa sistêmica dentro do sistema?

Barbosa – Há uma causa sistêmica, sim. Mas há também uma falta de vontade, em muitos casos. Há falta de vontade, há medo do juiz. Ele deixa aquilo ali, deixa correr em muitos casos. A causa sistêmica: nosso sistema penal é um sistema muito frouxo. É um sistema totalmente pró-réu, pró-criminalidade. Essas sentenças que o Supremo proferiu aí de dez anos, doze anos, no final elas se converterão em dois anos, dois anos e pouco de prisão, porque há vários mecanismos para ir reduzindo a pena. E, por outro lado, esse sistema frouxo tem vários mecanismos de contagem de prazo para prescrição que são uma vergonha. São quase um faz de conta. Tornam o sistema penal num verdadeiro faz de conta. Vou dar um exemplo aqui para vocês: se um indivíduo comete um crime no ano de 2000, esse crime tem uma pena de até dois anos. Se o Ministério Público não propõe a ação e a ação não é recebida até 2004, nada mais pode ser feito. Mas se algo tiver sido feito, digamos, em 2003 – estou falando em hipótese – se algo foi feito em, digamos, julho de 2003, e se chegar a julho de 2007 e não tiver concluído aquele julgamento, está prescrito. Esse é um exemplo de como é o sistema brasileiro. Tudo conspira para que os processos criminais não tenham qualquer consequência.

Jornalista – Isso é uma herança das elites ou é uma herança da época da ditadura?

Barbosa – Eu acho que é um pouco de tudo. E esse sistema político. Isso beneficia as pessoas corruptas dentro do sistema político.

Jornalista – O Conselho Nacional de Justiça pode mudar isso ou precisa Congresso?

Barbosa – O Conselho não pode mudar isso.

Jornalista – Mas pode conscientizar?

Barbosa – Pode conscientizar para estimular, para apontar o dedo para a ferida. Juízes que prevaricam, juízes que têm comportamento estranho dentro ou fora de determinado processo. Para isso o Conselho Nacional de Justiça é muito bom. Foi uma grande novidade. Como disse um ex-colega meu aqui, ministro Carlos Britto, o Conselho Nacional de Justiça veio para expor as vísceras do Poder Judiciário brasileiro, e é isso o que ele vem fazendo.

Jornalista – Mas quais as reformas que precisam ser feitas?

Barbosa – Olha, são algumas muito simples. Fazer um sistema de Justiça penal mais consequente. Acabar com essas regras de, por exemplo, essas regras de prescrição absurdas. Eu conheço vários países em que só há uma forma de prescrição. E ela é contada não no curso do processo, mas antes. Ou seja: se o Estado não tiver condições de apresentar uma ação penal contra alguém que é acusado até, digamos, cinco anos, aí o Estado não tem mais direito. Eu acho perfeito esse tipo de prescrição. Mas não, aqui no Brasil foram inventando mecanismos ao longo dos anos. O próprio Judiciário! Foi se criando mecanismos para, no meio do processo, ocorrer a prescrição. Então basta que um juiz engavete um processo contra uma determinada pessoa durante cinco, seis anos... Esqueça daquele processo e quando ele se lembrar já estará prescrito.

Jornalista – Por outro lado não se pode fazer com que a Justiça seja mais célere, com que esses juízes não possam engavetar, por exemplo?

Barbosa – Foi o que eu disse. O Conselho Nacional de Justiça é o órgão que estabelece metas de cumprimento... Eu lembro que há dois ou três anos foram estabelecidas várias metas e boa parte dos tribunais cumpriram as metas. Antes não existia nada disso. E, por outro lado, ele tem o poder de punir. De investigar e punir práticas incorretas no meio do Judiciário.

Jornalista – Além dos casos das prescrições, teria alguma outra causa sistêmica?

Barbosa – Tem sim.

Jornalista – Quais são os pontos principais que precisavam reformar?

Barbosa – Uma reforma de mentalidades também eu acho que seria muito boa. Uma reforma de mentalidades da parte dos juristas.

Jornalista – Mas isso não vai obrigar os juízes a cumprir prazos e essas coisas...

Barbosa – Veja bem, vocês que já moram aqui no Brasil há algum tempo, vocês podem perceber: as carreiras jurídicas são muito parecidas. Por exemplo, as carreiras de um juiz ou de um procurador ou promotor de Justiça, são muito próximas. Os concursos são os mesmos, a remuneração é a mesma, o pessoal quase todo sai das mesmas escolas. Uma vez que se ingresse em uma dessas carreiras, as mentalidades são absolutamente díspares. Uma é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade. E a outra rebelde, contra status quo, com pouquíssimas exceções. Então, há um problema, não apenas sistêmico, mas orgânico dentro da própria instituição judiciária. Nesse plano de mentalidades, eu estou dizendo.

Jornalista – Mas a dúvida fica: como se corrige mentalidades?

Barbosa – Se corrige com esclarecimento, com isso aí que o Conselho Nacional de Justiça faz. Nós temos vários (painéis) em diversos assuntos relacionados a direitos fundamentais, prisões, direito à saúde, etc., etc., e o Conselho tem grupos de trabalho que rodam o Brasil esclarecendo, instigando os Judiciários locais e Federal sobre os mais diversos assuntos.

Jornalista – Até que ponto isso tudo, e o Poder Judiciário em especial, tem a ver, tem responsabilidade sobre o que acontece no sistema penitenciário brasileiro?

Barbosa – Tem um pouco. Não é o Poder Judiciário o responsável primeiro. Por quê? Quem constrói as prisões, quem tem o poder para construir, para manter as prisões, não é o Judiciário. É o Poder Executivo. Em geral, o Poder Executivo não dá a mínima. Não dá a menor atenção. Os governantes brasileiros não dão importância a esse fenômeno tão nosso que é esse sistema prisional caótico. Mas o Poder Judiciário também tem uma parcela de culpa porque há muitos juízes de execução penal que são puramente burocráticos. Eles têm a responsabilidade para supervisionar a execução da pena, mas ficam em seus gabinetes. Eles não vão lá saber, ver a situação concreta das prisões. Apenas tomam decisões puramente formais ao passo que o mundo das prisões é aquele inferno que muitas vezes eles nem procuram saber de que se trata.

Jornalista – A ONU tem criticado muito o sistema prisional brasileiro. São compatíveis as críticas?

Barbosa – Sim, claro! O sistema prisional brasileiro é caótico. Agora isso no Brasil, infelizmente, é utilizado para afrouxar ainda mais o sistema penal. O que eu acho um absurdo. Não há sistema penal em países com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil tão frouxo, que opere tanto pró-impunidade. Há um desequilíbrio do discurso aqui no Brasil. Há todo um discurso garantista – você que cobre o tribunal sabe muito bem –, um discurso garantista que domina a mídia: a grande mídia, a mídia especializada. E esse discurso garantista é inteiramente pró-impunidade, embora com uma outra roupagem, com um outro discurso. E há a situação concreta do sistema prisional. Que precisa, sim, ser melhorado. É preciso dar condições dignas às pessoas que cumprem penas de prisão, mas o alvo desse discurso garantista não é exclusivamente essas pessoas que já estão lá no sistema criminal. O alvo é não permitir que certas classes de pessoas entrem nesse sistema.

Jornalista – Ministro, eu fiquei curioso. Como é que o senhor pode dar um exemplo mais prático desse discurso garantista na grande mídia?

Barbosa – Dou um exemplo! Vários! Durante o julgamento da AP 470, houve um determinado momento... Houve um jornal que fez um editorial pra dizer que as penas que estavam sendo aplicadas eram absurdas, que eram medievais, que não se deveria colocar pessoas desse nível em prisão. Seria melhor aplicar-lhes penas pecuniárias. Como se o Supremo Tribunal Federal tivesse poder para, no meio de um processo, deixar de aplicar as penas que estão previstas na lei. E isso foi dito num editorial de um grande jornal brasileiro contra o Supremo Tribunal Federal. Agora, consultem qualquer especialista sobre as penas que foram aplicadas neste processo e vocês chegarão à seguinte conclusão: as penas foram baixíssimas. Houve casos dum sujeito que – não vou citar nome, mas (acusado por) corrupção, na casa de milhões – levou uma pena de dois anos, dois anos e pouco.

Jornalista – Agora, a AP 470 mostrou que existe uma falha também no sistema semiaberto. O senhor acha que isso pode ser modificado, dada essa visibilidade?

Barbosa – Olha, eu já recebi aqui uns dois governadores que... Governadores, Ministro da Justiça já veio falar aqui comigo umas duas ou três vezes para dizer que estão trabalhando nisso, que há dinheiro, inclusive, do governo federal para ajudar o Estado na construção dos equipamentos que são próprios para o sistema semiaberto. Só que isso leva tempo. A gente conhece a burocracia brasileira, a lentidão para que as coisas aconteçam.

Jornalista – O senhor disse anteriormente que o senhor vai determinar os locais. O senhor não vai deixar que outro juiz faça essa determinação de onde vai cumprir pena.

Barbosa – Sim, a execução vai ficar aqui comigo.

Jornalista – Ministro, voltando a outro assunto. O senhor percebe maior cobrança do público em geral sobre a Justiça no Brasil? Está encorajado com isso, acha que tem mais para fazer?

Barbosa – Eu creio que sim. Nos últimos anos, no Brasil... Em primeiro lugar, o Poder Judiciário entrou na cena política de vez. A própria competência que o STF tem da Constituição já faz com que ele atue na cena política. Mas o que houve de fato foi uma aproximação muito grande do Judiciário com a sociedade como um todo. Especialmente depois da criação dessa TV Justiça, que as pessoas assistem aos debates, se inteiram, bem ou mal, veem como funciona a coisa aqui. O interesse cresceu muito. Além do mais, o Brasil é o país que tem per capita, o maior número de faculdades de Direito. Todo mundo estuda Direito neste país. Então o interesse é muito grande.

Jornalista – Falando nessa popularidade do Poder Judiciário e na própria do senhor, com certeza vai declarar que não tem interesse nenhum em ser presidente...

Barbosa – Eu não tenho interesse, eu não tenho phisique du rôle.

Jornalista – Mas máscara de Carnaval tinha... Mas essa não é a pergunta. Eu queria um parecer do ministro sobre este impacto. O que está dizendo a sociedade brasileira quando o senhor é tão popular no Carnaval?

Barbosa – Eu acho, a minha opinião pessoal, é que é um fenômeno que está ocorrendo em outros países, certamente. A sociedade está cansada dos políticos tradicionais, dos políticos profissionais. Essa é a leitura que eu faço.

Jornalista – O senhor mencionou a pauta extensa da Corte. E tem uma pauta de 10 mil casos...

Barbosa – Não, aqui no plenário não.

Jornalista – E quanto tem? Esse volume é difícil de trabalhar?

Barbosa – Primeiro deixe eu lhe explicar qual é a organização da Corte. O STF compõe-se de 11 ministros, mas ele tem duas turmas, duas câmaras de julgamento, Primeira e Segunda Câmara. Eu diria que 85% a 90% de todos esses processos, 60 mil atualmente, são julgados inicialmente pelos ministros, monocraticamente, como se diz, com possibilidade de recurso para uma das câmaras, ou são julgados diretamente por uma dessas câmaras. Os demais processos, ou são da competência do presidente ou do Plenário. O Plenário tem, quando cheguei aqui na Presidência, cerca de 700, 800, eu não sei qual é o número – não sei se vocês têm como conseguir – mas deve estar entre 600 e 700 processos. É um número muito elevado em razão do modo de trabalho do Plenário. Vocês já viram, é muito lento. Um estilo e uma forma de julgamento que é muito pesada, que tem um ritual pesado. Dou um exemplo: ontem nós tínhamos uma pauta com oito, nove processos divididos em dois, três blocos de três, quatro cada um. Nós julgamos dois processos apenas e ficamos até oito da noite para decidir um único caso, que nem era um julgamento final, era o julgamento de uma liminar, mas com uma carga política muito pesada. Então, como o tribunal, sempre, com muita frequência, tem esses casos com carga política muito grande, eles vão contribuindo para que a pauta vá aumentando, aumentando, aumentando e o tribunal não dê conta de diminuir esse load de processos. Mas eu diria que o modo de trabalho é, sem dúvida nenhuma, a causa principal para a lentidão no processo de julgamento do Plenário. Nas turmas se julga muito rápido.

Jornalista – Então precisa se reduzir esse número de processos ou mudar a forma de trabalhar?

Barbosa – As duas coisas. Olha, este ano, não sei se já perceberam, quem cobre aqui o tribunal, tem havido menos discussões no plenário. Por exemplo, vários ministros se puseram de acordo no sentido de que, quando ele estiver de acordo com o relator, ele vai proferir um voto muito rápido, de 10 minutos, no máximo, concordando. Antigamente, não. O sujeito para concordar ficava uma hora, uma hora e meia.

Jornalista – E para discordar?

Barbosa – Para discordar, duas, três...

Jornalista – Eu queria colocar uma coisa para um colega que está escrevendo sobre o Supremo. Ele queria uma pergunta mais leve: o sistema de julgamento é aberto e sai na televisão e tudo mais, e isso tem gerado uma louvação de algumas pessoas, que dizem que é uma boa coisa aqui no Brasil. Mas tem essa questão do decoro, às vezes sai uma briga ou outra entre os ministros. Isso é uma coisa particular ao sistema, isso vai continuar, esse tipo de bate-boca dentro do tribunal?

Barbosa – O senhor é americano?

Jornalista – Sou, e lá não tem muito isso...

Barbosa – Vocês só não ficam sabendo (risos). Mas é igualzinho aqui.

Jornalista – Mas aqui sai na televisão...

Barbosa – Leia o livro “Nine Scorpions in a Bottle”... (risos)... Somos todos humanos.

Jornalista – O senhor espera que isso vá continuar, vai tentar diminuir?

Barbosa – Como eu disse, está tudo muito calmo, até agora.

Jornalista – Mas vem aí o mensalão mineiro...

Barbosa – É, a vida política brasileira é bem rica...

A entrevista completa você lê aqui.

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