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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Hildegard: Ditadura, a grande escuridão do Brasil


GOLPE EM ANDAMENTO



"Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos."





Neste momento em que um golpe ronda um país vizinho, é meu dever dizer aos jovens o que é um Golpe de Estado

Neste momento extremamente grave em que vemos um golpe caminhar célere rumo a um país vizinho, com o noticiário chegando a nós de modo distorcido, utilizando-se de imagens fictícias, exibindo fotos de procissões religiosas em Caracas como se fosse do povo venezuelano revoltoso nas ruas; mostrando vídeos antigos como se atuais fossem; e quando, pelo próprio visual próspero e “coxinha” dos manifestantes, podemos bem avaliar os interesses de sua sofreguidão, que os impedem de respeitar os valores democráticos e esperar nova eleição para mudar o governo que os desagrada, vejo como meu dever abrir a boca e falar.

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.

Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.

Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.

Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…

Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.

Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.


Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.

As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.

E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.

Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.

E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.

Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.

Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.

Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.

Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.

Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.

E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!

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A tentativa de implosão do Mais Médicos pela máfia do jaleco branco e a embaixada dos EUA


OPINIÃO


O nome disso é escárnio


O sultanato de jaleco branco trata a saúde como um mercado de camelos; alia-se ao conservadorismo retrógrado e tem na embaixada dos EUA um corredor de fuga.

Saul Leblon



Algo outrora inescapável do epíteto de um escárnio contra o povo brasileiro está em curso nos dias que correm.

O ruído que provoca - tanto nas fileiras do governo, quanto nas de segmentos que se avocam à esquerda dele - é incompreensivelmente desproporcional a sua gravidade.

Que as sininhos não badalem e, igualmente, seus carrilhões silenciem, é ilustrativo do fosso existente entre o inflamável alarido anti-Copa bimbalhado nas ruas e a real preocupação com o futuro do país e a sorte da população.

A Associação Médica Brasileira, em sintonia com a embaixada dos EUA e aliada à coalizão demotucana, tendo respaldo e torcida da mídia, opera abertamente para destruir um programa de saúde pública emergencial voltado às regiões e contingentes mais vulneráveis do país.

Não há resguardo das intenções, nem pudor na propaganda da ação.

A entidade que se proclama representante da corporação médica brasileira acolhe e viabiliza deserções de profissionais cubanos fisgados pelo redil conservador em diferentes regiões e municípios.

O Estado brasileiro investirá este ano R$ 1,9 bi em recursos públicos nesse programa, para agregar 43 milhões de atendimentos/ano ao SUS a partir de abril, quando o Mais Médicos atingirá seu efetivo pleno, com mais de 13 mil profissionais em ação, sendo seis mil cubanos.

A embaixada dos EUA no Brasil - em sintonia com a Associação Médica e lideranças dos partidos conservadores - opera abertamente para que não seja assim.

O tripé orienta e encaminha pedidos de vistos especiais, a toque de caixa, para que o maior número de desistentes possa rumar a Miami, onde os espera a estrutura da "Solidariedade Sem Fronteiras".


A ONG de fachada humanitária tem como principal negócio - financiado por recursos orçamentários que a bancada cubana assegura no Congresso - promover e operar deserções em convênios de saúde firmados entre Havana e 66 países nesse momento.

São mais de 43 mil médicos cubanos em ação na América Latina, Ásia e África. Devem atingir um recorde de 50 mil em dois meses, quando o convênio brasileiro estiver plenamente implantado.

Um aspecto da remuneração desses profissionais deliberadamente pouco divulgado é que nem todos os convênios internacionais de Havana são pagos.

Na verdade, dos 66 países assistidos nesse momento apenas 26 se enquadram no que se poderia chamar de prestação de serviços pagos.

Outros 40 países recebem contingentes médicos gratuitamente.

O mesmo ocorre com missões de educação ou esporte.

A ‘exportação’ de serviços rende a Havana, segundo a chancelaria cubana, cerca de US$ 6 bi/ano (três vezes mais que a segunda fonte de divisas do país, representada pelo turismo).

A exportação de serviços pagos - principalmente na área de saúde - financia as missões solidárias destinadas a países de extrema precariedade econômica e material ou focadas em situações de calamidade devastadora.

É assim desde 1960, quando Cuba enviou sua primeira missão de solidariedade ao Chile, vítima de um terremoto.

Eis a principal razão para a diferença entre o salário efetivamente recebido pelo profissional de uma missão e aquilo que o governo cubano arrecada pelo serviço prestado.

Uma parte do saldo financia as missões gratuitas que, repita-se, são a maioria.


Outra sustenta a Escola Latino-americana de Medicina, que possuía em 2013 cerca de 14 mil alunos estrangeiros, gratuitamente cursando ou com subsídio quase integral.

Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, Cuba investe pesado em pesquisa na área de saúde e formação de médicos: são quase 83 mil (1/138 habitantes).

O investimento tem duplo objetivo: zelar pela população que tem a menor taxa de mortalidade infantil do mundo, e gerar receita numa economia asfixiada há 50 anos pelo embargo comercial norte-americano.

Também isso se financia através das missões remuneradas.

A ideia de que a doutora Ramona Rodriguez possa ter desembarcado no Brasil desinformada dessas particularidades acerca de seu salário subestima a conhecida determinação de Havana, de ressaltar interna e externamente aquela que é a marca inegável de sua ação internacional: a solidariedade.

A mesma alegação de ignorância tampouco se pode conceder - neste aspecto - ao colunismo isento, que cuida de festejar as deserções - por ora pontuais - como se fossem o preâmbulo de uma diáspora libertária, em marcha épica rumo a Miami.

A participação da embaixada norte-americana no jogo de aliciamento e hipocrisia é ainda mais grave.

Trata-se de uma tentativa de sabotagem de um programa soberano de saúde pública emergencial, cujo desmonte poderá agregar novas vítimas e mais sofrimento num universo de milhões de brasileiros desassistidos.


Se a intrusão é desconcertante, não se pode dizer que surpreenda.

Quando o governo Lula decidiu quebrar a patente de anti-virais, em 2007, a embaixada norte-americana operou para sabotar a medida.

Agiu em contato direto com as múltis do setor farmacêutico, o Departamento de Estado do governo Bush e ‘amigos’ locais - não se sabe se os mesmos que hoje cerram fileiras com o duplo interesse de implodir o ‘Mais Médicos’ e sangrar Havana.

Telegramas secretos da época, obtidos pela organização Knowledge Ecology International (KEI), revelam ameaças de represália enviadas então a Brasília:

“(...) uma licença compulsória pode fazer com que fabricantes de produtos farmacêuticos evitem introduzir novos remédios no mercado e seria mais difícil para o Brasil atrair os investimentos que tanto necessita", relatava um deles sobre o teor de reuniões com autoridades e políticos locais.

Lula oficializaria em maio de 2007 o licenciamento compulsório do anti-retroviral Efavirenz, usado por 75 mil pacientes de Aids atendidos pelo SUS. Um genérico importado da Índia passou a ser usado ao preço de US$ 0,45, contra US$ 1,59 cobrado pela multinacional norte-americana. Uma economia de US$ 30 milhões até 2012.

Volte-se um pouco mais no tempo, até as vésperas do golpe de 64, e lá estarão, de novo, os mesmos protagonistas, com idênticos propósitos.

O embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, fileiras udenistas e lacerdistas, múltis do setor farmacêutico e sabujos da mídia, a ganir a pauta da estação.

Eram tempos de inflação galopante e dinheiro curto: a saúde corria risco.

O então ministro da Saúde, Souto Maior, lutava para obter uma redução de 50% sobre os preços de 70 medicamentos mais usados pela população.

Laboratórios das multinacionais abriram guerra contra o tabelamento.

Às favas a saúde: primeiro, os interesses das corporações.

Lembra algo do comportamento atual da embaixada que se orienta pelos mesmos valores e da Associação Médica Brasileira que tanto quanto os abraça?

No famoso comício da Central do Brasil, sexta-feira, 13 de março de 1964, João Goulart decretou a expropriação de terras para fins de reforma agrária, encampou refinarias e anunciou estudos para fabricação estatal de medicamentos no país.

O conjunto era fiel aos preceitos do ‘sanitarismo-desenvolvimentista’, abraçado então pelas fileiras progressistas da medicina brasileira.

Médicos como Samuel Pessoa, Mário Magalhães, Gentile de Melo e Josué de Castro – autor do clássico ‘Geografia da Fome ‘ e primeiro secretário- geral da FAO, que faleceu no exílio, cassado pela ditadura e impedido de retornar ao Brasil mesmo para morrer – eram alguns de seus expoentes.

Profissionais que hoje seriam olhados com suspeita enxergavam a luta pela saúde como indissociável da luta pelo desenvolvimento econômico e humano do país.

Em setembro de 1963, Jango, com apoio deles, restringiu a remessa de lucros da indústria farmacêutica. Mister Lincoln Gordon foi à luta: a USAID retaliou no lombo da pobreza cortando a ajuda no combate à malária – que se destacava como uma das principais doenças tropicais na época.

A ofensiva apenas fortalecia as convicções dos sanitaristas-desenvolvimentistas.

Embora heterogêneos nas filiações ideológicas, seus representantes entendiam que doença e pobreza caminhavam juntas. Como tal deveriam ser enfrentadas em ações soberanas, abrangentes e desassombradas, que rompessem a fragmentária estrutura de uma sociedade retalhada por interesses que não eram os de seu povo.

Compare-se isso com o sultanato de jaleco branco.

Esse que hoje trata a saúde como um entreposto de camelos; alia-se ao conservadorismo mais retrógrado e tem na embaixada dos EUA um corredor de fuga em prontidão obsequiosa.

Bajulado pela mídia, o conjunto quer implodir o ‘Mais Médicos’. 


O nome disso é escárnio. E Brasília deveria dizê-lo claramente à embaixadora gringa, ao chamá-la a prestar esclarecimentos sobre ingerência e sabotagem em assuntos internos.

Carta Maior

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