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domingo, 13 de janeiro de 2013

O drama do ativista Cesare Battisti


Injustiçado até no Supremo Tribunal Federal, o ativista político italiano Cesare Battisti hoje goza de liberdade, após 4 anos de ilegal encarceramento no presídio da Papuda, em Brasília.

Carlos Lungarzo, pesquisador, ex-professor universitário e ativista da Anistia Internacional nos conta em livro a saga de Battisti, ferozmente perseguido na Itália e no Brasil.

"Lungarzo descreve o drama de Battisti em três atos: 1) o cenário de repressão e terrorismo da Itália – a verdadeira razão para a perseguição; 2) o segundo julgamento de Milão, o réu condenado ausente, defendido mediante procurações falsas de advogados desconhecidos, tempo em que os verdadeiros autores dos assassinatos de que foi acusado já estavam presos e condenados; 3) o julgamento no Supremo Tribunal Federal, no Brasil."



Battisti, a quem possa interessar 

Resenha do livro de Carlos Lungarzo

Apóllo Nátali*


O ódio coletivo e a perseguição obstinada sustentados a partir da Itália durante 32 anos contra o ex-ativista da esquerda Cesare Battisti se transformaram no que o psicólogo alemão Wilhelm Reich (1897-1957) chamou de “praga emocional”, termo que assume conotação terrificante na definição do real espírito da humanidade quando escrito em outro idioma: Emotionale Pest. Battisti foi alvo de uma “lei da ralé”, linchadora. Essa lei é “a mais violenta expressão de uma opinião pública insana, e mostra que a sociedade está podre até a medula”, no dizer de Timothy Thomas Fortune (1856-1928), jornalista afro-americano, militante antirracista e líder dos direitos civis. Assim amplamente nos fala Carlos Lungarzo, em sua via crucis para explicar a maré de linchamentos sofridos pelo italiano escritor, em “Os cenários ocultos do caso Battisti”, da Geração Editorial.
Constrangedora para os perseguidores principais de Battisti (o estado italiano) e os secundários (o resto do mundo) é a definição da Emotionale Pest: “Um estado de alienação que favorece o surto maciço de rancores, orientados por objetivos como racismo, imperialismo, genocídio, homofobia, misoginia e outros. Esses estados são deflagrados por deficiências psicossociais, especialmente (vejam só!) na vida sexual. Misoginia, para quem falta tempo para abrir o dicionário, significa aversão mórbida dos homens às relações sexuais, desprezo pelas mulheres. É com essa estrutura pessoal, impotente, que o torturador empala suas vítimas.
Lungarzo descreve o drama de Battisti em três atos: 1) o cenário de repressão e terrorismo da Itália – a verdadeira razão para a perseguição; 2) o segundo julgamento de Milão, o réu condenado ausente, defendido mediante procurações falsas de advogados desconhecidos, tempo em que os verdadeiros autores dos assassinatos de que foi acusado já estavam presos e condenados; 3) o julgamento no Supremo Tribunal Federal, no Brasil.
No seu primeiro antigo julgamento havia sido condenado por delitos políticos, sem acusação de mortes. Na ocasião fugiu da prisão, viveu no México, depois na França, onde o presidente Chirac derrubou o refúgio concedido por Mitterrand. Da França fugiu para o Brasil, onde ficou preso ilegalmente durante 4 anos, linchado pelo Supremo Tribunal Federal e finalmente obteve o asilo no último dia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Este reduzido espaço é insuficiente para fazer as honras ao trabalho em três atos e quatro anos de pesquisa de Lungarzo. Ele foi integrado pelo ex-preso político Celso Lungaretti em 2008 ao círculo solidário solidificado no mundo contra a extradição de Battisti pelo Brasil. Destaca-se nesse círculo a escritora francesa e antropóloga Fred Vargas, que em defesa do asilo expôs ao mundo em powerpoint os papéis falsificados pelos tribunais italianos. Aprendeu a falar português durante mais de 20 viagens de Paris a Brasília em sua maratona humanitária. Há que se dispor de espaço para honrar o inteiro teor do trabalho de Carlos Lungarzo, a credibilidade desse argentino que vive no Brasil e que sofreu semelhantes perseguições durante as ditaduras do Cone Sul. Disponho de 10 linhas para isso.
Doutor em Ciências Sociais e Ciências Exatas e pós-doutor na área de sociologia matemática pela McGill University, de Montreal, Canadá, Carlos Lungarzo foi professor titular das Universidades Estaduais de Campinas (UNICAMP) em São Paulo e do Rio de Janeiro (UERJ) além de visitante em universidades de vários países. Foi pesquisador do CNPq do Brasil, entre 1988 e 2004. Escreveu artigos em periódicos especializados e publicou nove livros da sua área. É militante voluntário em organizações de direitos humanos e de organismos internacionais de refugiados há mais de 30 anos. Celso Lungaretti, o baluarte na defesa do asilo de Battisti, quem primeiro alertou Lungarzo para a tragicomédia fascista, escreveu mais de 300 artigos em seu blogue Náufrago da Utopia. Lungarzo, um tanto mais em seus blogues, além de outros dois livros, “Uma breve análise do caso Battisti”, 53 páginas e um primeiro “Os cenários invisíveis do caso Battisti”, 115 páginas.
Vamos ao resumo dos três atos das pesquisas de Lungarzo sobre a perseguição insana a Cesare Battisti, lembrando a impossibilidade de narrar em pormenores nestas poucas linhas a descrição dos personagens que assumiram a perseguição e os sombrios cenários em que atuaram, por último os cenários do Supremo Tribunal Federal. Senhores alienados, mal intencionados, os acometidos pela Emotionale Pest, melhor ainda, os bem intencionados deste mundo, os estudiosos sinceros das chagas da humanidade, procurem todos a descrição tenebrosa da perseguição e suas circunstâncias históricas na leitura paciente de "Os cenários ocultos do caso Battisti". Sim, Lungarzo é também um historiador.
O primeiro ato, é preciso paciência para digerir, é o cenário de repressão e terrorismo na Itália e no mundo: o terrorismo de estado a varrer o comunismo do planeta, que uniu a OTAN e a CIA aos fascistas, aos militares e às sociedades secretas na Itália; o cenário equivalente na América Latina: a sobrevivência da ditadura brasileira no judiciário, no exército, na polícia e em grande parte do sistema político e empresarial; o cenário oculto da mídia, bem diferente do seu cenário visível, em ambos os países, Itália e Brasil, e mesmo na França, – a trama íntima da mídia incluiu distorção da verdade, omissão, autocensura, manipulação, sensacionalismo, difamação, desconstrução pessoal; o cenário teológico brasileiro, que é contraditório. Enquanto um pequeno grupo de católicos progressistas e alguns padres e monges marginalizados pela Igreja apoiam a causa do perseguido, a maioria dos fiéis e todo o aparato eclesial põem discretamente, com sua habitual modéstia, combustível na fogueira; o cenário da direita “legal”, especialmente no Brasil. Racistas, neoliberais, fazendeiros, jagunços, comunicadores, empresários, financistas empolgam-se com a esperança de um golpe contra o governo Lula e um mega banho de sangue maior ainda que o cotidiano massacre de populares. “Fracassei totalmente ao tentar indagar o cenário oculto das finanças. Nem os eficientes pesquisadores britânicos e franceses puderam me ajudar. Ele estava realmente oculto, com seus acessos fechados a sete chaves.”
O segundo ato é o segundo julgamento de Battisti em Milão, ele ausente, fugitivo pelo planeta, defendido por advogados munidos de representações falsificadas mediante o recurso do decalque de assinaturas antigas do perseguido. Neste ponto da caçada internacional, a família de Battisti é sequestrada e torturada. As procurações apócrifas estão denunciadas e comprovadas nas páginas 211 a 216 do livro de Lungarzo. A quem possa interessar. Quem lê vale mais. Em julgamentos montados pelos alucinados artífices fascistas da magistratura italiana, Battisti foi condenado duas vezes a prisão perpétua.
O terceiro ato é o linchamento de Battisti pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil, que o manteve preso ilegalmente durante 4 anos, aprovou a extradição e engoliu o seu cala boca por parte do governante a quem, pela lei brasileira de asilo, competia a decisão, o presidente Lula. Os sinceros que não fogem à procura da luz nestes episódios, procurem as páginas de 303 a 316, onde o assunto é dividido nos seguintes títulos sobre a perseguição do STF a Battisti: o pretoriano chefe, o inquisidor mestre, o círculo do mestre, a voz do amo, a preparação do julgamento, o processo inquisitorial, a anulação do refúgio, votando a extradição, quem decide extraditar.
Os quatro homicídios imputados falsamente a Battisti, num cenário de resistência ao terrorismo da direita, tempo em que os verdadeiros culpados já estavam julgados e presos, são o do carcereiro da prisão de Udine Antonio Santoro, o do açougueiro Lino Sabbadin, o do ourives Perluigi Torregiani e o do motorista da polícia Andréa Campagna. O primeiro, Santoro, era conhecido entre os internados de Udine e seus familiares como massacrador de detentos de longa data, sendo denunciado em vários documentos como organizador de tormentos e violador dos direitos dos presos. Sabbadin era filiado ao MSI, Movimento Socialista Italiano, o mais tradicional grupo neofacista italiano, que matava ladrões e outros marginais. Torregiani andava ostensiva e fortemente armado por Milão, e procurava confronto com os seus alvos como pretexto para matar. Exibia em sua loja uma foto do cadáver de uma de suas vítimas. O motorista da polícia Andréa Campagna era acusado de torturar presos. O mais conhecido entre os quatro mortos era o ourives Torregiani, com influência econômica e política, proximidade com a mídia, membro de um grande grupo parapolicial chamado Maggioranza Silenciosa (Maioria Silenciosa).
Battisti era contra a violência e por esse motivo foi expulso do seu grupo, acusado de traição. Um dos trechos de um julgamento de 1983 o menciona como ideólogo contra o sistema prisional, o que coincide com a crença de que os carcereiros o odiavam especialmente por ter denunciado as torturas aplicadas em Udine. Outro trecho se refere ao seu temperamento digno, pois havia sido expulso da sala de audiências por desacato verbal aos magistrados e sua negativa a se curvar ao ritual de reverência. Ambos os trechos do julgamento confirmam conjectura de Lungarzo de que a atitude de Battisti enraivecia seus algozes, que pensavam nele com especial animosidade, avivando a fúria de perseguição, o que não se percebe com nenhum dos outros réus. Pessoas com esse perfil irredutível são as que a primitiva Inquisição chamava de hereges penitentes relapsos. A esquerda combatia o fascismo com ações e não apenas com palavras e foi apoiada pela população marginalizada.
De brinde, o livro de Carlos Lungarzo termina com uma entrevista de Cesare Battisti, feita depois da conclusão do seu trabalho para não sofrer qualquer intromissão nas suas verdades pesquisadas. A quem possa interessar.

* Jornalista e escritor, é colaborador também em blogs progressistas.

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