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sexta-feira, 29 de junho de 2012
Judiciário elitista: pobres X "iluminados" doutores da lei
"... os cursos de direito, e os cursos superiores em geral, têm o compromisso pedagógico de promover o desenvolvimento social e político do país, promovendo a igualdade e a justiça, não apenas a defesa da propriedade, dos negócios, da tradição e do desenvolvimento econômico. (...) o direito deve ser antes um instrumento de justiça e de libertação humana, e não apenas mecanismo de repressão, controle e manutenção da ordem e da propriedade."
Os “grileiros” do Largo de São Francisco
Antonio Alberto Machado*
Dois jovens “doutores da lei” publicaram um artigo no jornal Folha de S. Paulo em 26.06.12, sob o título “Os donos do Largo de São Francisco”, condenando veementemente a presença de mendigos nesse local onde funciona o tradicional curso de direito fundado por D. Pedro I em 1827, integrado à Usp a partir da criação dessa universidade em 1934, se não me engano.
Entre outras invectivas, os aprumados doutores da Universidade de São Paulo alegam que os mendigos praticamente moram na calçada em frente à Faculdade de Direito e ocupam essa área o dia todo, deixando lixo, dejetos e “dezenas de pessoas amontoadas”, promovendo algazarras e consumo de drogas, como se estivessem numa autêntica “hospedaria a céu aberto”, tudo sob os olhos complacentes da polícia , da Prefeitura Municipal, do Ministério Público e do Tribunal de Justiça.
Enfim, os ciosos bacharéis da Usp produzem uma verdadeira catilinária contra esses miseráveis ocupantes do Largo de São Francisco, qualificando-os expressamente como “indivíduos sem propriedade”, que deveriam ser removidos para abrigos sociais, deixando livre o espaço que é de uso comum de todos e símbolo de importantes lutas que marcaram a história política brasileira.
O artigo não aponta nenhuma saída para o problema e reproduz acriticamente o senso comum daqueles que observam apenas a superfície dos fatos, e que propõem as soluções mais ingênuas possíveis, como, por exemplo, a simples remoção dos miseráveis e a “higienização” do espaço público, com a subsequente devolução desse espaço a quem de direito, limpo e livre da miséria.
Mas, o artigo parece ter pelo menos um mérito: o de chamar a atenção para o perfil de bacharel que a Universidade de São Paulo, no seu aclamado curso de direito, vem produzindo nos últimos tempos. De fato, deve haver algum problema com o projeto pedagógico do curso de direito do Largo de São Francisco para formar bacharéis que propõem a simplista repressão aos pobres, o confinamento deles em cadeias ou serviços de atendimento social, a “limpeza” do espaço público, sem nenhuma sensibilidade para com a injustiça social que jaz por baixo do problema que os iluminados doutores da lei tentaram abordar.
Deve haver mesmo algum problema com a pedagogia jurídica do curso de direito da Usp (e dos cursos jurídicos em geral) que produz bacharéis tão dispostos a defender a propriedade, a tradição e a família, reprimindo os expropriados, os excluídos da participação social e política, bem como as famílias destes, que jazem no relento morrendo às portas de um oráculo onde só deveriam entrar os proprietários e os grandes homens.
Essas posturas, tão comuns entre os bacharéris em direito, revelam que os cursos jurídicos no Brasil são mesmo elitizados e elitistas. Revelam que a nossa cultura jurídica está profundamente assentada sobre os cânones do “contrato”, da “propriedade”, da “norma” e da “autoridade”. Quer dizer, trata-se de uma cultura jurídica essencialmente burguesa, cujos juristas se convertem, majoritariamente, naquilo que Antonio Gramsci chamou de “intelectuais orgânicos da burguesia”.
Mas, além da alienação social e política revelada nesse malfadado artigo dos mancebos da Usp, chama a atenção o desprezo, talvez o ódio de classe, e bem assim a violência verbal com que os articulistas colocaram na mesma categoria gramatical o “lixo”, os “dejetos” e as “dezenas de pessoas amontoadas” no Largo de São Francisco.
Era preciso ensinar a esses doutores juvenis que os cursos de direito, e os cursos superiores em geral, têm o compromisso pedagógico de promover o desenvolvimento social e político do país, promovendo a igualdade e a justiça, não apenas a defesa da propriedade, dos negócios, da tradição e do desenvolvimento econômico. Era preciso ensinar a eles que o direito deve ser antes um instrumento de justiça e de libertação humana, e não apenas mecanismo de repressão, controle e manutenção da ordem e da propriedade.
Esses dois rapazes da Usp, apenas porque cursaram essa renomada Universidade, talvez se achassem no direito, e até na obrigação, de defender o templo sagrado onde obtiveram os seus títulos e as suas láureas. Mas, deveriam saber que a Usp, e a universidade pública enfim, é do povo, inclusive e sobretudo dos mendigos, verdadeiros destinatários do saber e, sobretudo, do fazer que lá se reproduz.
O título de doutor obtido nessa prestigiada instituição não é, obviamente, um título de propriedade, nem pode ser um título com o qual os seus detentores, praticando uma espécie de “grilagem”, venham a arvorar-se no direito e na condição de “legítimos donos” da Usp, ou do Largo de São Francisco, propondo o “despejo” dos miseráveis e a “reintegração de posse” naquele espaço sagrado, porém, em nome apenas dos “abençoados” e dos “indivíduos proprietários”.
* Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo e professor livre-docente do curso de direito da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca-SP.
Blog do Machado
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