Demoramos a perceber que foi Deus, e não Eva e Adão, que cometeu o primeiro pecado. Hoje isso é claro, mas durante anos acreditamos no erro divino como se fosse um acerto, aquele que está lá na Bíblia, escrito como uma ordem que nunca deveríamos ter levado a sério.
No livro de Deus o homem aparece no mundo como senhor da Terra, e toda a natureza e os animais são postos a seu serviço e exploração. O homem foi autorizado por Deus a cuidar do mundo, mas não como guardião e protetor amoroso e, sim, como a raposa no galinheiro. Durante anos a fio o próprio homem, achando-se pecador, não desconfiou que o pecado original nada tinha a ver com ele, e sim com o próprio Deus. Assim acreditando, seguiu a doutrina bíblica de que a ele cabia servir-se do mundo.
Alguns santos indignaram-se com tal coisa. São Francisco de Assis desconfiou de Deus. Saiu pelado em protesto. A Igreja fez para ele uma Ordem. “Vá cuidar você dos que declaramos sem alma, deixe para o resto da Igreja as almas que rendem dízimo” – foi o que os outros padres lhe disseram, autorizados alvissareiramente pelo Papa.
Mas não só santos estranharam o mundo ordenado biblicamente. Alguns filósofos nunca acompanharam de cabeça baixa a ditadura bíblica. Heidegger, por exemplo, achou que a dominação moderna levada a cabo pela técnica científica não havia trazido felicidade ao mundo. No entanto, ainda como outros, ele imaginou que o homem – fundamentalmente o Humanismo – havia sido o culpado de tudo. Caso nos despedíssemos da doutrina humanista, da fúria epistemológica cartesiana, e nos voltássemos a escutar a Voz do Ser, deixaríamos de ver o mundo como algo para as nossas mãos. Então, pacificados por uma renovação da filosofia como contemplação – agora antes auditiva que visual – poderíamos refazer a relva da Terra.
Houve filósofos que viram verdade no que Heidegger tinha dito sobre a ciência, a técnica e a tecnologia, mas não quiseram culpar o homem e sua doutrina. Acreditaram que o mundo tinha uma ordenação pouco promissora. Agiram como se o pecado fosse mesmo de Deus, mas impossível de ser desfeito. Horkheimer levou a sério Schopenhauer e declarou sua crença na metafísica do mal. Não poderíamos estar na Terra e, ao mesmo tempo, não matar os animais e não poluir tudo de modo abusivo. Poderíamos, aqui e ali, criarmos mecanismos sociais e culturais para amenizar o mal. Todavia, o mal estaria instaurado como uma força tão louca quanto a Vontade schopenhauriana ou as forças cósmicas nietzschianas.
Mas, esses santos e filósofos, no limite, nunca foram levados a sério nem mesmo por quem os seguiu. Os adoradores de São Francisco não se tornaram protetores dos animais. Os scholars de Heidegger, em cada universidade, correm para lá e para cá fazendo carreira acadêmica e sendo os mais distantes bípedes da vida contemplativa. Os leitores de Horkheimer nem sempre conseguiram ler suas últimas obras, aquelas nas quais ele recomendou uma vida social-democrata como o modo de criarmos o melhorismo possível no mundo dominado pelo mal. A maior parte deles são devoradores de cadáveres. Só comem cometendo assassinatos.
É claro que existiram os adoradores da arte, que se imaginaram no Olimpo. Filósofos que disseram que o homem iria abandonar o projeto predatório do Deus bíblico se se tornassem andarilhos da estrada estética. Adorno e John Dewey quiseram achar as placas indicativas dessa rodovia. Eles realmente encontraram essa estrada e foram vendo que ela não tinha postos de gasolina e, sim, galerias de arte. Nunca se deram conta de que cada galeria continha quadros pintados com pincéis de pêlo de marta. Nunca foram capazes de aprender a matemática do cotidiano para contabilizar o sofrimento das martas, que pagaram com a vida o deleite estético de uma elite tão pecaminosa quanto Deus.
Quando Jesus veio ao mundo para afrontar o Deus bíblico, pregando a doutrina do amor e não da justiça, ele fez só meio serviço. Jesus não teve a coragem de perceber que ele só escapou de Herodes por conta do burrinho que carregou Maria e ele, conduzido por José. Jesus não entendeu nada do mundo. Afinal, sendo ele próprio filho de quem dizia ser, não poderíamos, mesmo, esperar muito.
Quando menino, eu comecei a achar que esse Deus bíblico tinha alguma coisa de errado. Depois, como filósofo, eu percebi claramente que esse Deus sem-vergonha, além de errado, não havia feito um movimento sequer para se redimir. Resolvi então, eu mesmo, começar a agir. Comecei a conversar com os animais. Tentei olhar para o Cosmos segundo o que vieram a me ensinar. Passei a entender que todo ato nosso contra eles era a covardia máxima a ser feita na Terra, porque nenhum deles jamais conseguiu desconfiar de nós como os que se aproximavam deles, mesmo quando com afagos, para engaiolá-los, matá-los e devorá-los. Hoje, vivendo com o Pitoko, finalmente tenho meus primeiros vislumbres sobre algumas possibilidades de barrarmos a voz errada de Deus e sua crueldade onipresente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário