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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Brasil, país de doutores

O post " 'Doutora' em quê?", dias atrás, acabou levantando uma polêmica sobre o uso correto do tratamento "doutor" a pessoas sem o título de doutorado.

É realmente uma questão controversa. Há os que defendem e os que condenam o uso.

Me posicionei e continuo me posicionando contra tal uso, porque me parece vinculado a comportamento subserviente manifesto em bolsões de subalternidade.

Por outro lado, a república já foi proclamada há mais de um século. Faz sentido invocar um decreto da época do Império para justificar a continuidade do emprego de "doutor" a médicos e advogados?

É de se perguntar se tal uso não seria resultado também da existência de bolsões de prepotência, de arrogância, de elitismo, de megalomania, de superioridade...

Tem sentido, em pleno século XXI, manter uma tradição tão provinciana, tão atentatória à igualdade entre os cidadãos protegida pelas constituições mais avançadas e defendida pelo menos teoricamente por todos nós?

É uma questão interessante para se debater, para refletir. Envolve valores, direitos, cidadania.

Por isso, resolvi estimular esta reflexão, publicando alguns artigos interessantes. Inicio com um texto de março de 2010 encontrado no portal G1.


Brasil, país de doutores



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Durante uma tese de doutorado você passa por diversas situações que o estimulam a desistir, e simplesmente abandonar tudo. São longas horas de dedicação a um determinado assunto. Durante anos você é mal remunerado e nem sonha com qualquer direito trabalhista. Afinal, você é um “estudante”. Mas também não tem direitos estudantis. Esse “limbo” acadêmico que é o doutorado termina após muito sacrifício e abstinência dos prazeres mundanos, sacrifício da saúde, pouco contato com a família e com amigos. Isso acontece com a maioria dos doutorandos em ciências biológicas. Acredito que não seja muito diferente em outras áreas do conhecimento.

Se você é exceção, acaba com uma bela tese e os resultados serão publicados numa revista de impacto ou mesmo num livro, dependendo do assunto. Em geral, a maioria dos doutorandos “só” termina a tese. Ela será impressa e arquivada em uma prateleira de alguma biblioteca, de alguma universidade. Resta a sensação de ter contribuído um pouquinho com o potencial intelectual da espécie humana. Para muitos isso basta, afinal agora você tem o título de “doutor”, é uma autoridade em determinada área e um leque maior de possibilidades poderá se abrir para você.

Segundo dicionários da língua portuguesa, “doutor” é aquele que atingiu o maior grau de instrução universitária. É todo aquele que defende uma tese na presença de uma comissão julgadora de especialistas da área, os quais julgam a originalidade e relevância da dissertação. Apenas instituições universitárias autorizadas podem conceder o título.

No Brasil, “doutor” é também um título tradicionalmente associado a bacharéis, médicos e advogados. Em alguns casos, como para os advogados e certos religiosos, o título é garantido constitucionalmente, com origens não muito nobres, datadas do período da colonização brasileira. Em outros, como no caso dos médicos, o título é informal, garantido pelo povo como respeito ou admiração a esses profissionais.

Em países de língua inglesa, os títulos profissionais são usados de forma mais específica para cada caso ou profissão. Por exemplo, usa-se o termo “Medical Degree” ou simplesmente “MD”, informando que o profissional é formado em medicina. Caso esse profissional defenda uma tese, ganha também o direito de usar o “PhD” (Philosophiae Doctor), assim como o “Dr” brasileiro, indicando o mais alto grau acadêmico. “MD” e “PhD” distinguem dois tipos de profissionais de saúde, que podem ou não usar os dois títulos.

Voltando ao Brasil. Na realidade, em nosso país, o título de “doutor” se estende para todo “homem muito instruído em qualquer ramo” (a definição do Houaiss), incluindo engenheiro, pastor, político, economista, dentista, delegado etc. E como “instrução” é um parâmetro subjetivo, acaba-se assumindo que todo homem “bem-sucedido” teve instrução. Na sociedade brasileira, a vestimenta do indivíduo, ou seus bens materiais, refletem a imagem “bem-sucedida”. É essa imagem que faz muito engravatado ser chamado de “Doutor” pelas pessoas, principalmente as mais humildes.

Esse percurso inusitado do termo “doutor” acaba dividindo classes sociais em doutores (ricos) e não doutores (pobres). “Doutor” deixa de ser utilizado como um título e vira pronome de tratamento. O famoso “Pra você é Doutor Fulano” anda de mãos dadas com o egocêntrico fenômeno nacional “Você sabe com quem está falando?”, bem utilizado em discussões onde o interlocutor busca uma forma de demonstrar superioridade e proteção.

O uso indiscriminado do termo reflete a forte tendência do tradicional distanciamento das classes sociais no Brasil. Nesse cenário, o papel do doutor acadêmico acaba diluído, pois o número desses profissionais é bem menor. Longe de mim querer restringir o direito de uso do termo “doutor” somente àqueles que defenderam uma tese. Meu objetivo com esse texto é apenas informar o leitor que existe uma classe de doutor – aquele que faz pesquisa científica. A maioria desses doutores não gosta de ser chamada de doutor, não ganha bem e raramente usa gravata.

Há doutores bons e ruins em todas as áreas, doutores que recebem o título por mérito e outros que se autointitulam doutores.

Pequenas ações, como reciclar o lixo, economizar água ou recolher o cocô do cachorro da rua, podem alterar em muito nosso ambiente social. O uso do termo “doutor” com mais cuidado pela população pode ajudar a diminuir a distância social, valorizar os melhores profissionais em todos os ramos, além de estimular o aperfeiçoamento individual.

Alysson Muotri





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