247 - Com o resgate da memória de João Goulart, cujos restos mortais foram recebidos com honras militares em Brasília nesta manhã, o Brasil paga uma dívida com seu passado. Em editorial da Carta Maior, Saul Leblon compara o período de 1964 com os dias atuais. No evento, a presidente Dilma Rousseff falou também sobre o "dia histórico".
Abaixo, o texto de Saul Leblon:
Getúlio, Jango e os dias que correm
Contra Vargas, o mar de lama. Contra Jango, o ouro de Moscou. Nos dias que correm, o mensalão, a companheirada, a gastança, o abismo fiscal.
Saul Leblon, da Carta Maior
A derrubada violenta de Jango em 1964 foi antecedida, a exemplo do que se fez com Vargas, dez anos antes, de uma campanha midiática encharcada de ódio e acusações de corrupção contra o seu governo e a sua pessoa.
A popularidade de Vargas revestiu o desenvolvimento brasileiro com travas de soberania e direitos sociais inaceitáveis pelo dinheiro local e forâneo.
A mesma e dupla intolerância colidia com a aprovação popular às reformas de base de Jango, constatada então por pesquisas do Ibope sonegadas à opinião pública pelos veículos de comunicação (leia neste blog ‘Jango: mídia falsificou a autópsia política’).
Nos dois casos, a caça à corrupção se transformaria na única marreta disponível para a derrubada conservadora do governo.
Quis o destino que 49 anos depois do golpe de 64, quando a versão falsificada daquele período é desmentida pelo desagravo solene do Estado brasileiro a Jango, um novo ataque disfarçado contra os mesmos objetivos se configure.
É pedagógico e inquietante.
As mesmas forças, os mesmos interesses, os mesmos veículos e o mesmo linguajar que levaram Vargas ao suicídio e violentaram a democracia em 64, agora se unem abertamente para golpear o esforço progressista de retomar a construção interrompida de um Brasil mais justo e soberano.
Contra Vargas, ergueram-se as manchetes do ‘mar de lama’.
Contra Jango, 'o ouro de Moscou', ‘a República sindicalista’, ‘o naufrágio dos valores cristãos’, a ‘falência do abastecimento’.
Nos dias que correm, ‘o mensalão’, ‘a companheirada’, o ‘intervencionismo estatal’, a ‘gastança’, o ‘abismo fiscal’, a implosão iminente da economia.
‘Se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’, reitera o necrológio diário do colunismo especializado em sepultar o interesse social na cova da república rentista.
Exacerbam-se os decibéis do jogral que não desafina nunca.
A purga redentora dos livres mercados é a única solução para uma economia envenenada pela criação de 20 milhões de empregos em 12 anos. A prisão ‘exemplar’ dos ‘mensaleiros’ é o laxativo indispensável à assepsia de uma política cúmplice do voluntarismo econômico, como diz o grão tucano FHC.
Não se releve aqui o ilícito cometido em um sistema eleitoral apodrecido pela hegemonia dos interesses que agora se avocam os savonarolas da moralidade pública.
O dinheiro privado que dá à campanha o seu fulgor publicitário é o mesmo que desidrata projetos, amesquinha governos, aleija lideranças e desacredita o voto e a política.
Importa, todavia, enxergar além da neblina que subordina o principal ao secundário.
Em 54, em 64 e em 2014 o nome do jogo não é ética, como se constata da temperança das manchetes -- e togas inflamadas -- quando se trata da corrupção conservadora.
Casos terminais de credibilidade em ruína, como o da ‘Folha de SP’, já se prestam ao estudo acadêmico de cases da manipulação informativa, em que o veículo deixa de ser referência para ser referido.
O que está em jogo é o comando do processo de desenvolvimento brasileiro.
O udenismo de 54 e 64 ao contrário de atenuar sua ganância e o entreguismo foi coagido pela determinação das finanças globalizadas a radicalizar seu descompromisso com a sorte do desenvolvimento e o destino da sociedade brasileira.
Não se diga que a mesma asfixia não esgoelou em parte a agenda progressista.
Mas o fato é que nem mesmo um programa moderado de reformas e oxigenação social como o da coalizão centrista liderada pelo PT é tolerável.
Avulta desse estreitamento histórico a sofreguidão estalada nas manchetes, que promovem o adestramento circense das togas incumbidas de ocupar o picadeiro com degolas e sentenças profiláticas.
Contra o PT e contra tudo o que ele representa.
Como se sabe, ele representa a corrupção sistêmica, sendo a do conservadorismo sempre um ponto fora da curva.
Ao comando de holofotes, a toga desempenhou seu número nesta quarta-feira, dando cambalhotas no enredo da indignação seletiva, com o qual se pretende vitaminar candidaturas rastejantes a 2014.
Cumpre assinalar não apenas as linhas de passagem que unem o opróbio entre 1954,1964 e 2014.
Sobretudo, é imperativo iluminar a seta do tempo que não se quebrou na atualidade de mudanças estruturais reclamadas pelo país e por sua gente.
Em 13 de março de 1964, Jango pronunciaria um discurso memorável, que dava a agenda das reformas estruturais o lugar que ela ainda cobra na história brasileira.
É para a exumação dessa construção interrompida, que reafirma sua pertinência nos dias que correm, que Carta Maior chama a atenção nesse momento, especialmente de seus leitores jovens.
E o faz dando ao discurso da Central do Brasil o espaço de atualidade que a narrativa conservadora sempre lhe sonegou.
Sobre aquele pronunciamento, o leitor de Carta Maior, Fausto Neves Ribeiro da Silva, comentou:
“Ouvi este discurso com o radinho de pilha debaixo do travesseiro. Eu tinha 14 anos. Estava numa juventude atenta, que não acreditava em esperança mas em ações. Quem se manteve atento guarda na memória, ou aprendeu, o que e quanto perdemos.”
(veja e ouça um trecho aqui)
Leia, ainda, reportagem da Agência Brasil:
Restos mortais de Jango são recebidos em Brasília com honras militares
Da Agência Brasil
Brasília - Os restos mortais do ex-presidente da República João Goulart foram recebidos hoje (14) com honras militares, pela presidenta Dilma Rousseff. O corpo de Jango, como era conhecido, começou a ser exumado ontem, em São Borja (RS), e será submetido à perícia da Polícia Federal, na capital. A exumação faz parte de uma investigação para esclarecer se a causa da morte de João Goulart foi mesmo um ataque cardíaco, conforme divulgaram na ocasião as autoridades do regime militar.
Os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, José Sarney e Fernando Collor também acompanharam a cerimônia. Fernando Henrique Cardoso, que se recupera de uma diverticulite, não pôde participar da homenagem.
A presidenta Dilma Rousseff disse, em sua conta no Twitter, que a solenidade de honra ao ex-presidente João Goulart “é uma afirmação da democracia” no Brasil, que se consolida com este gesto histórico. “Hoje é um dia de encontro do Brasil com a sua história. Como chefe de Estado da República Federativa do Brasil participo da recepção aos restos mortais de João Goulart, único presidente a morrer no exílio, em circunstâncias ainda a serem esclarecidas por exames periciais. Junto comigo estarão ex-presidentes da República, o presidente do Senado e políticos de todas as vertentes. Este é um gesto do Estado brasileiro para homenagear o ex-presidente João Goulart e sua memória”.
Deposto pelo regime militar (1964-1985), Goulart morreu no exílio, no dia 6 de dezembro de 1976, na Argentina. O objetivo da exumação é descobrir se ele foi assassinado. Por imposição do regime militar brasileiro, Goulart foi sepultado em sua cidade natal, São Borja, no Rio Grande do Sul, sem passar por uma autópsia. Desde então, existe a suspeita de que a morte de Jango tenha sido articulada pelas ditaduras do Brasil, da Argentina e do Uruguai.
Após os exames, que serão feitos em Brasília e em laboratórios internacionais, os despojos voltarão para São Borja em 6 de dezembro, data de morte do ex-presidente. A exumação é coordenada pelo Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, e ocorrerá em duas etapas.
A primeira etapa é a análise antropológica, que detalhará informações sobre substâncias venenosas que eram usadas no Brasil, na Argentina e no Uruguai e podem ter causado o envenenamento do ex-presidente. Nesse momento, serão reunidos dados médicos e pessoais do ex-presidente. Além disso, será feita a análise do DNA. A segunda etapa constará do exame toxicológico dos restos mortais de Goulart para confirmar se houve envenenamento.
Brasil 247
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