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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Eliana Calmon: "Eu não sou uma perseguidora, sou uma juíza enérgica"



Aguerrida, corajosa, ousada, irreverente, midiática.


O nome dela anda frequentando bastante os gabinetes e corredores sombrios dos tribunais. Ela está nas conversas descompromissadas, nos artigos de juristas e intelectuais, na velha mídia, na internet, nas redes sociais. E virou unanimidade nacional. 


Exceto, claro, entre os "Bandidos de Toga", em direção de quem ela partiu pra cima, meses atrás, empunhando a espada de Themis. A bandidagem togada e amedrontada com tamanha ousadia tenta desmoralizá-la, ridicularizá-la, constrangê-la. Até de criminosa ela foi acusada. Mas Eliana, destemida, não dá tréguas. 


"Nitroglicerina pura". Impossível ficar indiferente. Ela veio para chacoalhar e quem sabe botar no chão as estruturas emboloradas e carcomidas do Mais Poderoso e Vetusto dos Poderes da República.


Conheçam um pouco mais de Eliana Calmon: a mulher que começou a abrir a caixa-preta do Judiciário.



PIMENTA BAIANA

Eliana Calmon, a primeira ministra do STJ

Rodrigo Haidar (artigo de julho/2009)

Em 1993, quando a juíza Assusete Guimarães tomou posse no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, encontrou apenas uma mulher: a baiana Eliana Calmon. E foi a ela que a novata recorreu para saber como devia agir, já que não havia no plenário banheiro feminino para servir às desembargadoras. “Mas, Eliana, aqui só tem banheiro masculino”, disse. “E por acaso você tem medo de homem?”, respondeu Eliana.

As duas riram e a baiana explicou à mineira Assusete o que fazer. “Espere começar a sessão de julgamento. Quando todos os desembargadores estiverem em plenário, vá ao banheiro”, ensinou. “Ok. Mas e se entre o tempo de eu entrar e sair do banheiro, algum desembargador aparecer e começar a usar o mictório?”, perguntou a nova desembargadora. “Passe por ele, dê um tapinha em suas costas e diga: ‘Tudo bem, colega?’. E volte para a sessão, ora.”

A cena descrita por uma colega de Eliana Calmon ilustra o jeito de ser da ministra do Superior Tribunal de Justiça. Segunda mulher na história do país a ser nomeada para um tribunal superior (a primeira foi Cnéa Cimini Moreira de Oliveira, designada ministra do Tribunal Superior do Trabalho, em 1990), ela não mede palavras. É o tipo de pessoa que se ama ou se odeia. A sinceridade à flor da pele chega a constranger alguns interlocutores. Outros admiram muito a característica da ministra. São famosos os casos de atritos da ministra com colegas e com advogados.

“Se o senhor não está contente, recorra ao Supremo Tribunal. Eu sempre decidi dessa maneira e, agora, o senhor acha que irá me fazer mudar de ideia em uma conversa de 15 minutos?” Dez entre dez advogados que atuam na seção de Direito Público do STJ sabem que essa resposta só pode ter uma dona: Eliana Calmon.

O advogado que saiu do gabinete da ministra depois de ouvir a sentença já tinha certeza do que deveria fazer naquele caso. Poderia ter ficado com raiva da juíza, mas não. “É melhor que o juiz seja previsível como é a ministra Eliana”, afirma. Histórias como a do profissional que esbarrou no jeito franco da ministra são contadas às pencas pelos corredores do STJ e em happy hours de escritórios de advocacia em Brasília.

Há quem jure que o ministro João Otávio de Noronha só trocou a seção de Direito Público pela de Direito Privado para não perder a linha de uma vez com a colega. Há cerca de três anos, Noronha chegou a entrar com representação contra a ministra por conta de uma discussão. Graças à turma do deixa disso, a representação morreu.

A forma de se expressar de Eliana, contudo, é vista por poucos como um defeito. Até quem costuma ser alvo dos ataques de sinceridade da ministra vê com bons olhos seu jeito de se expressar. O caçula da 2ª Turma do STJ, ministro Mauro Campbell, atesta: “Se tivesse que brigar com algum colega, escolheria a ministra Eliana porque a luta seria muito franca, no campo dos argumentos”.


Pólvora na sessão

Recentemente, a ministra deixou sem jeito o colega Benedito Gonçalves porque ele pediu vista de um processo do qual ela é relatora e demorou a trazê-lo de volta. Na última sessão do primeiro semestre de 2009, o ministro pediu, mais uma vez, o adiamento do julgamento do processo em que se discute a correção monetária sobre empréstimo compulsório devido pela Eletrobrás. Dessa vez, com a justificativa de que o advogado-geral da União trouxe fatos novos aos autos.

“É interessante. Eu sou a relatora e não conheço nenhum desses fatos novos”, disparou Eliana Calmon. Ela criticou novamente o fato de ministros protelarem o julgamento de processos que tramitam sob o rito de recursos repetitivos. “Há centenas ou milhares de ações que ficam suspensas enquanto a causa está parada aqui.”

Com o ministro Herman Benjamim — genioso e direto como a colega —, as contendas se tornaram folclóricas. Em uma das vezes, a ministra disse ao colega para que vestisse a toga porque já havia deixado o Ministério Público. Apesar das rusgas, muitas vezes os dois são vistos rindo juntos nas sessões. Recentemente, foi a vez de o ministro Campbell experimentar a força do tempero baiano.

Eliana Calmon estava irresignada pelo fato de o ministro acolher um recurso do Ministério Público e anular o processo de indenização por apropriação desde o início porque recebeu uma foto por satélite que dava conta de que a área desapropriada era de 800 hectares, não de 1.780, como reclamava o dono da propriedade.

Com os olhos quase saltando da órbita, a ministra bradava: “Como Vossa Excelência, com base em um papelucho, julga procedente um recurso e desfaz um processo no qual o proprietário espera 15 anos pela indenização?”

Calmo e cortês, o ministro Mauro Campbell manteve seu voto e divergiu sem levantar polêmica. “Respeito a posição de Vossa Excelência, mas mantenho o voto porque não se trata de um papelucho, mas de prova”, disse. No intervalo, a ministra já bastante descontraída registrou: “Eu louca para irritar esse homem e ele feito uma pedra de gelo. Encerrou a discussão e me deixou falando sozinha”.


Nome aos bois

A ministra Eliana Calmon fez a temperatura subir no Superior Tribunal de Justiça mesmo antes de sua posse. Na sabatina no Senado, surpreendeu ao criticar a forma de escolha dos ministros do Poder Judiciário. “O processo de escolha é muito político. Para um magistrado, fica difícil porque ele tem de aprender a jogar e fazer amizades políticas do dia para a noite”, disse.

“Mas a senhora teve padrinhos?”, perguntou um senador. “Se eu não tivesse, não estaria aqui”, respondeu. “E quais foram?”, insistiu o parlamentar. “Edson Lobão, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães, nessa ordem”, replicou, para surpresa de todos na Comissão de Constituição e Justiça e de quem assistia à sessão pela TV Senado.

“Meu irmão disse que pulou da cadeira e nem teve coragem de assistir ao restante da sabatina depois disso”, lembra Eliana, com um sorriso. O ato provocou as mais diversas reações. Houve quem dissesse à ministra que ela deu aos senadores, ali, um “atestado de imbecilidade”. Ao contrário. Eliana Calmon viu no ato a oportunidade de se livrar do constrangimento ao ter de rejeitar qualquer favor a quem a havia apoiado. “Naquele momento, eu declarei totalmente minha independência. Eles não poderiam me pedir nada porque eu não poderia atuar em nenhum processo nos quais eles estivessem. Então, eu paguei a dívida e assumi o cargo sem pecado original.”

Para chegar ao STJ, Eliana Calmon teve uma ajuda e dois adversários muito bem definidos. O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, pretendia entrar para a história ao nomear a primeira mulher para o STJ. A vaga aberta vinha a calhar. O quadro institucional era bom nesse sentido. Mas havia dois obstáculos a vencer. O primeiro era Ellen Gracie, então juíza do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que tinha o apoio de Nelson Jobim, ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Justiça de FHC. O segundo era o próprio Antonio Carlos Magalhães, o maior expoente político da Bahia na época, mas que apoiava o desembargador Lázaro Guimarães, da 5ª Região.

Com a força de todos os santos, o candidato de ACM não foi incluído na lista sêxtupla da magistratura federal enviada ao STJ. Primeiro obstáculo vencido. Para vencer o segundo, a baiana usou o apoio do primeiro. Eliana Calmon soube que Ellen Gracie seria a escolhida. Então, resolveu apelar a Antônio Carlos Magalhães. Pediu a diversas pessoas para a levarem a ele. Todos respondiam que ajudariam, mas não davam retorno. E a angústia aumentando.

A ministra decidiu, então, ligar para a casa de ACM. O senador não estava, mas seu secretário anotou o recado. Pouco antes das 19h de um domingo de março de 1999, o político baiano retornou a ligação. “Dra. Eliana, aqui é Antonio Carlos. Como vai a senhora? Está nervosa?”. A juíza respondeu: “Nervosíssima. A alma está saindo pela boca”. Depois de uma boa gargalhada, ACM a acalmou: “Pois fique tranquila. A senhora é uma mulher de muitos amigos, que já me procuraram. Eu falei ao presidente que ele tem um compromisso não com o Dr. Lázaro, mas sim com a Bahia. Independentemente do nome. Esse compromisso com a Bahia ele cumprirá. Vamos trabalhar”.

Em junho daquele ano, Fernando Henrique a nomeou. Um ano e meio depois, Ellen Gracie tomou posse no Supremo Tribunal Federal.

Eliana foi uma procuradora da República frustrada. Deixou o Ministério Público Federal porque não tinha independência para agir — antes de 1988, o MP fazia o papel de fiscal e advogado da União. Foi juíza federal em primeira instância por dez anos. Desembargadora por outros dez. Chegou à cúpula da Justiça há dez anos, para quebrar paradigmas e costumes.

Feminista de carteirinha, divorciada e independente, a ministra considerava um absurdo os ministros não a deixarem pagar sua conta nos jantares entre colegas. “Hoje a ministra está mais light, mas antes abrir a porta do carro para que Eliana saísse poderia ser considerado um ato ofensivo para as mulheres”, brinca um de seus colegas.

Quando ainda era desembargadora, nos idos de 1995, foi responsável por organizar a primeira comemoração do Dia Internacional da Mulher no TRF-1. Mas não queria fazer um evento voltado só para o público feminino e pensava como podia atrair o público masculino para as festividades. Bingo! “Vou chamar a deputada Marta Suplicy.” A cabeça da juíza fez a seguinte equação para concluir que chamar Marta seria uma boa. Era uma mulher bonita que falava de sexo. “Eles iriam ficar todos ouriçados”, pensou a então desembargadora. Tinha tudo para dar certo, mas não deu. “Marta me cobrou em dólar para fazer a palestra. Aí eu não pude trazê-la”, lamenta Eliana Calmon.


Números e casos

Dez anos depois de assumir o STJ, a ministra soma quase 30 mil recursos de sua relatoria julgados em sessões colegiadas e outras 75 mil decisões monocráticas. Feitas as contas, são mais de 10 mil decisões tomadas por ano.

Em comemoração pelos dez anos, os funcionários de seu gabinete fizeram um esforço concentrado. O objetivo era presenteá-la, no último dia 30 de junho, com o gabinete zerado. Ou seja, com todos os processos julgados ou pautados. Faltou pouco. O acervo da ministra hoje é de 1,5 mil processos, dos quais 500 estão suspensos por se tratar de matéria de recurso repetitivo.

Dentre os milhares de recursos, a ministra enfrentou algumas pedreiras. Para ela, um dos momentos mais tormentosos foi o da deflagração da Operação Navalha, cujo processo ainda está em curso. A ministra determinou, em 2007, a prisão preventiva de 47 pessoas, entre empresários e autoridades acusados de fraude a licitações e tomou o depoimento pessoalmente de cada um dos presos. Advogados alegam que Eliana Calmon, depois de participar ativamente da instrução processual, não pode julgar o caso. Ou seja, tem de abrir mão da relatoria do processo.

A ministra sustenta que o aborrecimento dos advogados é por conta da celeridade com que instruiu o processo. Mas alguns deles reclamam e apontam precedente do Supremo, firmado em 2004. Pela decisão, a realização do inquérito é função constitucional reservada à Polícia. Por isso, a ministra não poderia ter tomado os depoimentos dos acusados. Parte das prisões decretadas pela ministra no caso foi depois derrubada pelo STF por falta de fundamentação. Muitos também protestaram contra o vazamento de informações no caso.

A ministra justifica o fato de guiar pessoalmente as oitivas por motivos humanitários. “Chamei para mim a responsabilidade. Dessa forma, pude tratar com decência os presos. Quem estava doente foi liberado, assim como revoguei a prisão daqueles que entendi que não deviam estar presos. Como é que eu prendo uma pessoa e deixo ao léu da sorte sem saber o que está acontecendo com o meu preso?” De acordo com Eliana Calmon, a maior parte dos ministros, “quando chega a um tribunal superior, não quer saber de preso, não quer saber de parte. Eu não. Eu gosto de fazer o processo”. Se a ministra poderia ou não ter feito o que fez ainda deve ser motivo de muita discussão no processo.

Outra passagem marcante de sua carreira foi o processo contra o desembargador federal Francisco José Pires e Albuquerque Pizzolante. Em 2004, o juiz foi afastado do cargo no Tribunal Regional Federal da 2ª Região sob acusação de falsidade ideológica. A decisão foi tomada pela Corte Especial do STJ, em processo relatado por Eliana Calmon. “Depois de interrogar o desembargador e com o andamento do processo, eu entendi que a medida do afastamento era drástica demais. Muitos se safavam com coisas muito mais graves e ele, que cometeu um desvio de potencial ofensivo menor, tinha sido punido com o afastamento”, lembra Eliana.

A relatora propôs a suspensão da medida que o afastou do cargo. Sua proposta recebeu parecer favorável do Ministério Público e foi acolhida por seus colegas do STJ. Pizzolante voltou à ativa em dezembro de 2007 e morreu em janeiro de 2009. As lembranças do caso atormentavam a ministra, até que ela recebeu uma correspondência da mulher do desembargador. “Quando ele morreu, sua mulher encontrou um diário. Ela tirou cópia e me mandou uma parte na qual ele escreve a meu respeito. Ele diz que eu o tratei com muito respeito e que era uma pessoa magnífica...”, conta a ministra. “Isso me deixou muito aliviada porque eu não sou uma perseguidora. Sou uma juíza enérgica, o que é diferente.”


Bobó de camarão

Eliana Calmon é uma cozinheira de mão cheia. Para encerrar o primeiro semestre de 2009 e agradecer o esforço de seus funcionários pela tentativa de zerar o estoque de processos, a ministra Eliana Calmon os presenteou com um bobó de camarão, feito por ela mesma. Na cozinha, a ministra é tão enérgica quanto nas sessões do STJ.

No gabinete, não faltam quitutes preparados pela ministra, que são sempre aprovados por seus auxiliares. É famoso entre os funcionários o Pão Delícia, um quitute característico da Bahia feito pela ministra. “Sou a prova de que a mulher pode ser uma profissional de sucesso e, também, boa cozinheira. Uma coisa não anula a outra.”

A ministra gosta de inventar e já lançou três edições de livro de receitas culinárias, grande parte delas surgidas da cabeça e das mãos da própria Eliana. A primeira foi batizada Receitas da Mulher Moderna. “Foi feita para mulheres ocupadas que gostam de cozinhar. Receitas rápidas e simples.” A última edição chama-se Resp — Receitas Especiais. Tem mais de 300 receitas de doces e salgados, baianos ou não.

O dinheiro obtido com a venda do livro é doado para a Creche Vovó Zoraide, que fica em Uberlândia (MG). O local é administrado por uma ex-funcionária da ministra. “Ela não pode assumir obrigações, mas pode usar o dinheiro para fazer uma ou outra obra, construir o parquinho das crianças”, diz Eliana.

Pouco depois de Eliana lançar para valer sua candidatura à vaga de ministra do STJ, seus adversários se lançaram a bater insistentemente em uma só tecla para tentar enfraquecê-la. “Ela só tem um livro escrito, e de receitas”, diziam à época. Quem conhece a irreverência de Eliana Calmon jura que o título da 3ª edição do livro,Resp, foi escolhido só para responder a essa provocação.

Leia uma das receitas de Eliana Calmon

Cuzcuz de Tapioca

Ingredientes:

— 500g de tapioca
— 1 coco ralado
— 1 litro de leite
— 2 xícaras de açúcar
— 1 pitada de sal

Modo de preparo:

Misture a tapioca com o coco, o açúcar e o sal. Esquente o leite com cravo e canela. Em uma forma de buraco forrada com papel filme, coloque a mistura da tapioca, lentamente para não ficar compactada.

A seguir, despeje lentamente sobre a farinha de tapioca o leite quente (não deixe ferver). Abafe e, quando frio, desenforme, virando sobre um prato e puxando o papel filme.

Conjur

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