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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Iminente "Apocalipse social"

Ainda sobre o descalabro mundial gerado pelo sistema perverso e pervertido.


Mercadoria sem rentabilidade capitalista
Fome e "população excedente": os condenados do sistema

IAR Noticias  Junho 2011



Segundo a ONU, com "menos de 1%" dos fundos econômicos que os governos capitalistas centrais utilizaram para salvar o sistema financeiro global (bancos e empresas que desencadearam a crise econômica), se poderia resolver a calamidade e o sofrimento de bilhões de pessoas (quase a metade da população mundial) que são vítimas da fome extrema em escala mundial. E por que não se faz isso? Por uma razão de fundo: os pobres, os desamparados, a "população excedente", não são um "produto rentável" para o sistema capitalista.


Manuel Freytas*

Tradução: Sonia Amorim


                

Em meio à euforia desencadeada pelo que os analistas do sistema chamam o "começo do fim" da crise global, a ONU alertou que a fome aumentou "significativamente" e bateu um recorde nos três últimos anos.

Num primeiro capítulo, em 2008, e por causa do aumento dos preços do petróleo, houve uma escalada mundial do preço dos alimentos que incrementou o processo de fome extrema de que padecem habitualmente as populações mais desprotegidas da Ásia, África e América Latina.

Num segundo capítulo, com o desenvolvimento da crise recessiva global, esse processo se tornou agudo, atirando a população mais despossuída à marginalidade e à carência de alimentos para sobreviver ainda que só num nível precário.

Segundo a ONU, no mundo já há mais de 1 bilhão de pessoas que padecem de fome crônica, a cifra mais alta da história, e em todo o planeta há 3 bilhões de desnutridos, o que representa quase a metade da população mundial, de 6,5 bilhões.

Os dados foram divulgados pela diretora do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Josette Sheeran, em Londres, e pelo relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, Olivier de Schutter, num fórum no México.

A diretora do PMA estimou a quantidade de famintos, isto é, pessoas que não têm acesso sequer aos elementos básicos de alimentação, em 1,02 bilhão, e alertou que o fluxo de ajuda humanitária está num "mínimo histórico".

"Temos mais pessoas famintas que nunca", e reafirmou que "muitos acordam e não contam nem com uma xícara de alimento", afirmou Sheeran.

"O problema com a crise alimentar e a crise financeira é que penetraram silenciosamente em todo o mundo, afetando seletivamente os bilhões que se encontram na parte inferior do mundo (em termos de pobreza), que são os mais vulneráveis", assinalou Sheeran à Reuters numa entrevista.

De acordo com a funcionária responsável pelo organismo humanitário da ONU, essa situação é uma "receita para o desastre" e resulta "crítica para a paz, a segurança e a estabilidade em muitos lugares do mundo".

Além disso, Sheeran avisou que o PMA enfrenta "um grave déficit orçamentário", pois o programa só recebe US$ 2,6 milhões de um total de US$ 6,7 milhões necessários para dar de comer a 108 milhões de pessoas em 74 países. No campo de ação, essa falta de fundos se traduz no corte de programas que se desenvolvem em distintos países.

Deve ser explicado, a título de exemplo mais esclarecedor, que os US$ 6,7 bilhões do programa para "combater a fome mundial" equivalem somente a uns 10% da fortuna pessoal de Bill Gates, o homem que encabeça a lista de milionários no mundo.

A diretora do PMA reafirmou que, com "menos de 1%" dos investimentos econômicos que os governos fizeram para salvar o sistema financeiro global, se poderia resolver a calamidade de milhões de pessoas que são vítimas da fome extrema.





As fábricas da fome


Dentro do mercado e da sociedade de consumo capitalista, a lógica de produção não se mede pela satisfação das necessidades básicas da sociedade (comida, moradia, saúde, educação etc.), mas pelos parâmetros de otimização da rentabilidade privada.
 

A produção de bens e serviços (essenciais para a sobrevivência) controlada pelo capitalismo está socializada, mas sua utilização está privatizada: não responde a fins sociais de distribuição equitativa da riqueza produzida pelo trabalho na sociedade, mas a objetivos de busca de rentabilidade capitalista privada.

Neste contexto, e fora da órbita do controle estatal dos governos, os recursos essenciais para a sobrevivência estão sujeitos à lógica de rentabilidade capitalista de um punhado de corporações transnacionais (com capacidade informática, financeira e tecnológica) que os controlam a nível global, e com proteção militar-nuclear dos EUA e superpotências.

Neste cenário, a produção e comercialização de alimentos não está sujeita à lógica do "bem social", mas à mais cruel lógica da rentabilidade capitalista. 
Segundo a FAO, dez corporações transnacionais controlam atualmente 80% do comércio mundial dos alimentos básicos, e número similar de megaempresas controla o mercado internacional do petróleo, de cujo impulso especulativo se nutre o processo de alta de preços dos alimentos, causa da fome extrema que já se estende por todo o planeta. 

Por trás deste fabuloso negócio com os recursos essenciais para a sobrevivência humana, se encontram os principais bancos e grupos financeiros de Wall Street, que desempenham um papel determinante na especulação que se exerce nos mercados de energia e de matérias-primas e que impulsionam a atual escalada dos preços dos alimentos.

Entre os primeiros polvos transnacionais da alimentação se encontram a empresa suíça Nestlé S.A., a francesa Grupo Danone S.A. e a Monsanto Co., que lideram mundialmente a comercialização de alimentos, e que, além de controlar a comercialização e as fontes de produção, possuem todos os direitos sobre sementes e insumos agrícolas no mundo.


Os níveis de produção não se efetuam atendendo as necessidades humanas da população, mas atendendo às necessidades do mercado e da ganância capitalista.

Despojados de sua condição de "bem social" de sobrevivência, esses recursos se transformam em mercadoria capitalista com seu valor fixado pela especulação no mercado, e os preços não se fixam só pela demanda do consumo massivo, mas basicamente pela demanda especulativa nos mercados financeiros e agroenergéticos.

E os governos, ao não terem poder de gerenciamento sobre seus recursos agroenergéticos, se transformam em títeres das corporações que os controlam e que se apoderam da renda do que é produzido pelo trabalho social destes países.

E como o capitalismo transnacional (as corporações que controlam o petróleo e os alimentos) só produz para quem tem capacidade de comprar esses produtos, a falta de poder aquisitivo das maiorias empobrecidas do planeta acarreta por sua vez a que as corporações reduzam a produção para diminuir custos e preservar a rentabilidade vendendo menos mas mais caro.

O mundo passa por uma super demanda de alimentos e de petróleo que, por sua vez, reproduz a rentabilidade dos grupos que hegemonizam o poder sobre a produção e comercialização, e sobre os mercados da especulação financeira das matérias-primas.

Desta maneira, aos polvos petroleiros e alimentícios não interessa produzir mais, mas ganhar mais produzindo o mesmo com redução de custos de pessoal e infraestrutura.

E por mais apelos que façam as instituições "assistencialistas" do sistema capitalista como a ONU e a FAO (que sucedem a caridade religiosa), as corporações transnacionais estabelecem sua dinâmica produtiva a partir da relação custo-benefício.

Isto é, e atendendo à lógica essencial que guia o desenvolvimento histórico do capitalismo, só produzem atendendo à lei da rentabilidade, à lei do benefício privado, e não atendendo à lógica do benefício social.

Portanto, não há "crise alimentar" (como sustentam a FAO, a ONU, o Banco Mundial e as organizações do capitalismo como o G-8), mas um aumento da fome extrema mundial pela especulação financeira e a busca de rentabilidade capitalista com o preço do petróleo e alimentos.

O controle das fontes, da produção, da comercialização internacional e da massa de recursos financeiros emergentes pelas corporações transnacionais torna impotentes os governos dependentes (sem poder de gerenciamento sobre esses recursos) para resolverem os problemas da fome extrema que aflige suas populações.

Por outro lado, os fundos que destinam a ONU, o Banco Mundial e demais organizações do capitalismo transnacional são migalhas comparados com as ganâncias multimilionárias dos polvos do petróleo e da alimentação e o crescimento das fortunas pessoais de seus diretores e acionistas.




O dilema com a "população excedente"

Neste cenário, e dentro dos parâmetros funcionais do sistema capitalista (estabelecido como "civilização única"), a "população excedente" (os despossuídos e famélicos da terra) são as massas expulsas do circuito do consumo como emergente da dinâmica de concentração de riqueza em poucas mãos.

Estas massas despossuídas, que se multiplicam pelas periferias da Ásia, África e América Latina, não reunem os padrões do consumo básico (sobrevivência mínima) que requer a estrutura funcional do sistema para gerar rentabilidade e novos ciclos de concentração de ativos empresariais e fortunas pessoais.

Mas desta questão estratégica, vital para a compreensão da crise global e de seu impacto social massivo no planeta, a imprensa internacional não se ocupa. Os veículos locais e internacionais estão ocupados em elucidar como a crise produz a diminuição das fortunas dos ricos e a perda de rentabilidade das empresas.

Tanto o "milagre asiático" como o "milagre latinoamericano" (do crescimento econômico sem distribuição social) se construíram com mão-de-obra escrava e com salários irrisórios. Isto leva a que, ao cair o "modelo" por efeito da crise recessiva global, o grosso da crise social emergente com demissões em massa incida nessas regiões.

Além disso, essas massas expulsas do circuito do consumo requerem (para dar uma imagem "compassiva" ao sistema) uma estrutura "assistencialista" composta pela ONU e as organizações internacionais que representam uma carga e um "passivo indesejável" nos balanços de governos e empresas transnacionais em nível global.

Durante a crise (como a que hoje vive o sistema capitalista) as empresas e bancos preservam sua rentabilidade "reduzindo custos".

E as primeiras vítimas, as variáveis de ajuste, são as massas assalariadas e os setores mais vulneráveis da sociedade que pagam a crise dos ricos com demissões e redução de seus salários, enquanto os setores mais desprotegidos sofrem o impacto direto dos cortes dos planos sociais e de ajuda à pobreza dos governos.

Quem tente tirar o controle dos recursos essenciais às empresas e bancos transnacionais, antes deverá derrotar o poder militar nuclear dos EUA e das potências aliadas da União Europeia, gendarmes e resseguros políticos das corporações capitalistas que transformaram o planeta numa economia de enclave a serviço da rentabilidade privada.

Dentro desta equação (de um sistema de produção mundial só orientado para a busca de rentabilidade) se desenvolvem dois efeitos inversamente proporcionais: um crescimento recorde das fortunas pessoais e dos ativos empresariais capitalistas, e um crescimento recorde (como consigna a ONU) dos pobres e famintos que já alcançam a metade da população mundial.

No desfecho deste processo (de concentração de riqueza com "população excedente") se incubam as bases e o estopim de um "Apocalipse social" que o sistema e seus analistas todavia não registram nem prestam atenção.

É um dilema que não figura em nenhum debate nem discussão internacional, simplesmente porque o pobre, o faminto, não é mercadoria rentável, está fora do circuito do consumo e não gera dividendos.

E o desfecho não é profético, mas matemático: O que acontecerá quando a metade da humanidade que não come avançar sobre seus carrascos?

A praga da fome que já se estende como uma epidemia pelas áreas empobrecidas do planeta gera as condições para um "Apocalipse social".

Quase a metade da população do planeta - segundo a ONU - sobrevive em estado de pobreza ou abaixo do nível de sobrevivência, sem satisfazer suas necessidades básicas de alimentação.

Não é preciso muita imaginação (o fenômeno já se verifica na realidade) para medir o fator apocalíptico massivo que representaria para o sistema o avanço de exércitos de famintos buscando comida para sobreviver nas grandes cidades, enfrentando com a violência a repressão militar ou policial.

O que pode deter um faminto? O que pode perder um esfaimado além de sua vida que já quase nem a tem? Trata-se do instinto de conservação, o primeiro sistema de sinais que guia a conduta de um ser humano ou de um animal em situações extremas de luta pela sobrevivência.

Por acaso se utilizariam tanques, aviões e arsenais nucleares para deter os bilhões de pobres acometidos de "fome celular" que investiriam massivamente sobre as cidades para conseguir alimentos por quaisquer meios?

Com que discurso os políticos do sistema poderiam conter os acometidos de incontinência alimentar e reencaminhá-los pela senda da "civilização" e da "governabilidade democrática" capitalista?

Quanta propriedade privada concentraria um "empresário" capitalista antes que as multidões de famintos saqueiem sua casa e destruam tudo o que encontram à sua frente, inclusive sua vida e a de sua família?

Quantas balas ou mísseis conseguiriam disparar as tropas militares antes de serem destroçadas pelas multidões enfurecidas pela fome e a reação instintiva da busca de sobrevivência a qualquer custo?

Não se trata de uma revolução racional e planejada pela tomada do poder político, trata-se da "barbárie" em sua escala primitiva, uma regressão ao homem pré-histórico, sem nenhum modelo de "civilização" ou de "convenção social" que o contenha em sua busca de alimentos para sobreviver de imediato.

Trata-se, em última instância, de uma reação incomensurável da massa de "população excedente", que o estúpido, irracional e criminoso sistema capitalista todavia não registra.




* Manuel Freytas é jornalista investigativo, analista de estruturas do poder, especialista em inteligência e comunicação estratégica. É um dos autores mais difundidos e referenciados na internet.


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