Mais mazelas do Judiciário brasileiro. Trazidas não por uma de suas milhares e anônimas vítimas. Mas por quem conhece de perto suas entranhas apodrecidas. E no entanto cultiva pensamento crítico e independência, sem acumpliciar-se ou intimidar-se diante da violência institucionalizada.
A judicialização do Estado Brasileiro é um caminho antidemocrático
André Luís Alves de Melo*
Hoje vivemos um fenômeno em nosso país que remonta aos tempos da aristocracia monárquica, mas atualmente discutimos o papel do aspecto jurídico e seu impacto na sociedade. A evolução jurídica representará o mesmo avanço que promoveu o fim da escravidão e da monarquia em nossa pátria. Não podemos esquecer que muitos nobres “causídicos” defendiam a monarquia e a escravidão com vários argumentos, inclusive constitucionais.
Afinal, interpretar a Constituição apenas com elementos jurídicos, sem adentrar nos aspectos sociais e políticos, é quase um crime contra a sociedade, por isto o sistema ideal de interpretação da Constituição é o alemão, onde um Conselho com mandato de doze anos e sem vinculação a nenhum dos poderes estatais ou sociais decide o que é constitucional e o que é inconstitucional, trazendo a pacificação social e a mudança de pensamento, pois não permanecem até se aposentarem como é no Brasil. Com uma Constituição extensa e com termos subjetivos é humanamente impossível obter-se um consenso, principalmente quando se trata de assuntos de interesse do Judiciário.
Como pode o Judiciário ser menos parcial ao decidir acerca de um artigo constitucional de seu interesse institucional? Particularmente, acreditamos que juiz imparcial é um mero dogma, principalmente nos julgamentos individuais, mas certamente ao julgar poderá ser mais ou menos parcial. Também não há como definir categoricamente e com critérios meramente jurídicos o que é intimidade, independência, autonomia e outros termos constitucionais.
A judicialização do país traz um enorme prejuízo à sociedade e enriquecimento da classe jurídica em face de conflitos infindáveis que poderiam ser resolvidos de outra forma, mas o monopólio do mercado de trabalho de juristas incorre no empobrecimento da sociedade. Fórum não produz riqueza; indústria e empregos, sim. Um país não pode passar mais tempo gerindo conflitos do que produzindo trabalho rentável. É óbvio que há o aspecto cultural, onde se confunde Judiciário com Justiça, mas esta não pode ser monopólio de um grupo, todos podem fazer justiça, principalmente a conciliatória.
O Executivo faz justiça quando emprega bem as verbas, o Legislativo faz justiça quando faz boas leis, o Ministério Público também faz justiça quando fiscaliza e não é omisso, a igreja faz justiça, a escola faz justiça. E o Judiciário faz injustiça também, quando realiza concursos sem critérios de correção publicamente definidos, quando promove os que agradam a cúpula, quando não participa da vida social dos pobres, quando impede a fiscalização da sociedade e quando usa questões processuais para não decidir o mérito, apesar de o único motivo de sua existência seja para decidir o mérito, pois inclusive as teses jurídicas já constam das petições iniciais, contestações, manifestações ministeriais (formulações para consolidação dos direitos), onde a função da sentença seria dar eficácia executiva à tese que for acolhida na sentença.
Porém, para efetivar este monopólio induzem a sociedade a crer que acesso à Justiça é apenas acesso ao Judiciário e até criam complicações processuais para dificultar o acesso, apesar de externarem um discurso de acesso. Mas acesso à justiça não é apenas “entrar”, é também “sair” com a solução definitiva. O que se veda ao cidadão é o exercício violento do seu direito, mas mesmo assim há exceções, como na legítima defesa.
O sistema jurídico é caro, improdutivo, apesar de ter número de juízes e promotores suficientes, pois quando usa um dado de que em alguns países existe um juiz para três mil habitantes, omite que lá entram no cômputo os juízes arbitrais, os juízes leigos, os juízes de paz, os juízes municipais, os juízes administrativos e os juízes de instrução (que seriam os promotores no Brasil), mas desejam manter um monopólio judicial, pois em geral no campo judicial é necessário contratar um advogado para defender os seus direitos com base em um suposto princípio de cidadania, mas que tem um fundo de reserva de mercado de trabalho. Afinal, se o direito, em geral, é disponível, por que não posso dispor do mesmo em juízo?
E por que um bacharel em Direito precisa contratar um advogado ? O correto é o direito do cidadão de contratar um advogado e não ser obrigado a contratar um advogado. Em face desta reserva de mercado todas as tentativas de buscar alternativas extrajudiciais de solução de conflitos são sutilmente boicotadas. Mas jurídico não é apenas o judicial, este pode ter aspectos jurídicos e também meramente administrativos. Por exemplo, uma execução de direito sem embargos não é um ato jurídico, e sim administrativo, afinal jurídico é dizer o direito e em uma execução o próprio nome diz: simplesmente executa. Mas até hoje ainda consideramos o ato de execução, salvo algumas exceções legais, como ato jurídico, o que implica a necessidade de contratar um advogado e iniciar um novo processo judicial.
Outro aspecto desta judicialização é que através das ações do Ministério Público a classe jurídica passa a administrar o país juntamente com o Judiciário. Aparentemente há aspectos positivos, mas o problema é que são duas instituições autocráticas e sem respaldo popular, e quando falamos em participação popular não estamos nos referindo apenas a eleições, pois hoje já conhecemos outros mecanismos como o referendum. E por qual motivo não consultam a população sobre o trabalho individual dos promotores e juízes? Por qual motivo não publicam na Internet a produtividade de cada membro para sabermos quem está trabalhando ? Por qual razão não publicam o resultado das punições anuais aplicadas, ainda que se oculte o nome do profissional? Em geral decidem individualmente de acordo com interesses pessoais e dizem estar fazendo justiça social. A melhor justiça social é a preventiva e feita com a participação do povo. A maioria dos “juristas” não sabe como obter um auxílio reclusão ou pensão por morte ou uma assistência social junto ao INSS, pois somente conhecem o processo judicial.
Por falta de implantar o gerenciamento nas atividades os processos acumulam e depois [os juízes] pousam como vítimas dizendo que há milhares de processos. Mas não mostram a distribuição mensal, não fazem atividades jurídico-sociais e nem dividem em processos complexos e simples. Ações da área da família deveriam passar por assistentes sociais e psicólogos e não por advogados, juízes e promotores. Até hoje ainda se idolatram as audiências de reconciliação judicial como se o juiz ou o promotor fossem dotados de poder divino ou técnico para resolver estas questões.
O motivo pelo qual não delegam o trabalho é a vaidade pessoal. Um fator agravante é que para exercer os altos postos da área jurídica não se exige conhecimentos de administração pública e ciência política. E são estes profissionais que definem a estrutura da lei orgânica do Ministério Público e da Magistratura. Se tivessem interesse bastaria fazer uma lei orgânica moderna que o Legislativo aprovaria, mas apenas fazem projetos de leis orgânicas que em geral criam cargos e benefícios salariais para juízes e promotores. Um trabalho importante do Ministério Público, mas que é legado a segundo plano, são as recomendações ministeriais e atuação junto ao Legislativo e Executivo. Muitos membros ministeriais ainda sofrem da síndrome do judicialismo.
Isto tem causado sérios problemas à nação, tanto econômicos como políticos, pois o desequilíbrio entres os poderes é uma ameaça à soberania. Recentemente, observamos um presidente da alta corte judiciária dizer que não cumpriria a Lei de Responsabilidade Fiscal porque é um Poder e não precisa obedecer a lei do Legislativo. Ora, com este mesmo raciocínio o Executivo poderia dizer que é um Poder e não cumpre mais as decisões judiciais.
Quanto aos concursos jurídicos, não preenchem as vagas em razão da escolha dos examinadores, muitos sem cursos de pós-graduação e com uma cultura jurídica inaceitável pelos mais jovens, mas por pressão dos donos e professores de cursinho que de forma inadmissível também pertencem à magistratura e ao Ministério Público, continuam priorizando provas teóricas desconexas com a realidade, onde os cursinhos enriquecem seus proprietários ensinando os futuros “juízes e promotores” a decorarem respostas. Além do aspecto ético pelo fato de na mesma instituição existir examinadores e professores de cursinho, existe a questão de que se o serviço não está em dia, como é que os seus membros podem ter outro emprego?
O grande problema jurídico brasileiro são os comportamentos jurídicos não definidos, mas existentes, como os promotores engavetadores, que deixam tudo parado, e diferem dos arquivadores, pois estes pelo menos decidem pelo arquivamento, ou seja, resolvem a situação. Também há os promotores bumerangues: vivem pedindo diligências e o processo vai e volta, só faltam pedir para provar documentalmente a existência de Deus. Mas estes profissionais ministeriais não estão sós. Existem os juízes “emprateleiradores”, deixam tudo na prateleira, assim impressionam os que a visualizam, mas como não decide, o volume aumenta diariamente. Há também juiz esportista, que joga pingue-pongue processual, fazendo o chamado ao, ao, ao... ao autor, ao réu, ao promotor.
Recapitulando alguns conceitos básicos, a função do Judiciário não é administrar o país e sim resolver conflitos de forma definitiva, e deve ser considerada a última opção a ser adotada para a solução dos conflitos. Democraticamente a sentença deveria ser a conclusão das teses e fatos apresentados nas formulações iniciais, pois senão o Judiciário estaria sendo parte direta também.
Afinal as formulações iniciais (petição e contestação) não encaminham apenas o problema ao juízo, mas apresentam a solução, que é o pedido estrito. No Brasil, em razão do monopólio, passou a ser a primeira opção e em breve estará sendo necessário solicitar autorização judicial para nascer. Afinal, por qual motivo para fazer um divórcio consensual, um inventário consensual, precisa-se ir ao juiz judicial? Por que não implantaram os juízes de paz, e nem remuneram os juízes leigos, que devem ter no mínimo cinco anos de experiência, mas contratam juízes judiciais que têm um custo muito maior e em alguns estados nem se exige experiência?
E a função do Ministério Público é fiscalizar os serviços prestados pelos poderes estatais, mas alguns colegas insistem em se comportarem como assessores do Judiciário. Por qual motivo mantém-se a paridade numérica de juízes e promotores? Isto não tem nenhum sentido técnico, a não ser que alguns promotores trabalham demais e outros de menos. Alguns promotores fiscalizam sozinhos cinco prefeitos e mais de setenta vereadores, enquanto dez promotores fiscalizam um único prefeito e alguns vereadores. Alguns ajuízam ações civis públicas altamente complexas, enquanto alguns dão “pareceres” em ações de divórcio consensual e usucapião.
Aos que dizem que uma administração jurídica do Estado é eficaz, tenho minhas dúvidas. Afinal a classe jurídica é historicamente lenta em seus pensamentos e decisões. E ainda culpa o Legislativo, mas este sempre que vai fazer uma lei sobre questões nitidamente jurídicas consulta a velha guarda dos juristas que raramente apresentam alguma solução e quando muito apontam problemas, pois a evolução hoje é muito rápida e é preciso ver o futuro, não basta uma experiência do passado. Mas a solução todo mundo sabe que é democratizar tanto o Ministério Público e o Judiciário. O problema não é processual e sim institucional.
Enquanto existirem os “Coroneis” e “reis” da “Justiça”, estes não permitirão mudanças pois não admitem ceder poder, e nem aparecerá a corrupção, afinal a cúpula escolhe quem os sucederá através de promoções (sem fundamentação escrita) e concursos (por que não filmam as provas orais e disponibilizam para o povo, inclusive as escritas após a correção?) Assim, dificilmente o baixo clero do sistema jurídico tem acesso ao conteúdo das decisões e quando detecta algum problema tem que denunciar à Corregedoria, pois se expor a instituição ao público passa a ser perseguido e torna-se o denunciado. Por isto o controle externo é natural em qualquer instituição democrática, e será apenas administrativo, sem os aspectos de interpretação da aplicação da lei. Quem não presta contas ao povo é ditador, independente do nome que use.
O desrespeito é tão grande que inventam até concursos de peças processuais dentro de processos, ou seja, o cidadão ansioso para o deslinde de seu problema e os juristas escrevendo bonito para o concurso. Uma coisa é o mero discurso retórico, escrito ou falado, outra são as ações efetivas. Uma coisa é dizer que quer combater o crime, outra é trabalhar em conjunto com o Legislativo para aprovar medidas que permitam defender a sociedade. Uma coisa é dizer que quer aumentar o acesso à justiça, outra coisa é fazer medidas efetivas para este acesso amplo e não monopolista.
Por fim, justiça não pode ser monopólio dos juristas, principalmente dos “práticos judicialistas”. Justiça é democracia, e onde houver democracia haverá justiça, mas esta não é romântica, pois democracia é confronto. Romântico é a monarquia, a ditadura, onde poucos mandam e muitos obedecem. Resta saber qual tipo de regime queremos. Confesso que vislumbro pouquíssimos elementos democráticos no Ministério Público brasileiro, e nenhum no Judiciário brasileiro. Posso estar enganado, mas também não podemos confundir democracia com aristocracia.
Na verdade a reforma jurídica será feita por bem ou por mal. É melhor que seja por bem e que a classe jurídica participe deste momento, deixando o comportamento de apenas interpretar as leis e passar a influenciar o Legislativo para fazer boas leis. A função do jurista é muito mais nobre, não é mero despachante judicial como as faculdades têm ensinado, afinal hoje nem se formam mais em Direito. Não raramente adquire-se o diploma em prestações mensais, afinal o índice de reprovação nas faculdades de Direito é muito baixo.
Por isto defendemos a criação dos cursos sequenciais em Direito com duração menor para exercer funções jurídicas menos complexas. Precisamos rever até a questão de que apenas bachareis em Direito podem fazer provas para a OAB, para a magistratura e para o Ministério Público. Afinal, se são apenas provas teóricas que medem o conhecimento jurídico e que quase todos os aprovados têm que se submeter a fazer cursinhos e decorar apostilas, talvez outras carreiras também devam ter o direito de fazer as provas.
Principalmente no caso do Brasil, onde na verdade não há uma petição inicial, mas sim uma formulação inicial para consolidação do direito, pois em um país positivista raramente é possível criar algum direito a não ser através de lei. Em geral apenas consolida-se no caso concreto a norma geral. Poderíamos discutir após constatar que em vários países, como na antiga Rússia, não se exige conhecimento jurídico acadêmico formal para a magistratura judiciante, ou como na França, onde o que predominam são os julgamentos coletivos e na “justiça administrativa” há uma composição eclética entre juristas e administradores públicos.
A judicialização do Estado brasileiro é um fenômeno que diante do contexto mundial atual é inconcebível, pois fórum não produz riqueza. Uma nação não pode consumir-se em litígios, e a agilização do sistema jurídico ocorreria naturalmente com a criação de períodos fixos para permanência nos cargos de cúpula, assim como já é até nas forças armadas para os generais. O mesmo sistema seria adotado para desembargadores e procuradores de justiça, que seria a aposentadoria compulsória após um período de oito anos no cargo ou retornaria para o cargo de origem, pois em uma democracia não há superioridade definitiva entre membros de uma instituição.
Por fim, precisamos encontrar soluções e não apenas identificar problemas, sendo que a questão não é apenas jurídica, mas também política e social, e no contexto não há espaço para corporativismos, sob pena de transformarmos os cidadãos brasileiros em servos de uma cultura jurídica atrasada, ressaltando que alguns já confundem cidadãos com consumidores. Também é preciso formar opiniões públicas da necessidade de represália social e moral e não apenas jurídica, pois cassa-se um político, mas em seguida ele se elege novamente. É preciso democratizar os concursos jurídicos, os controles dos gastos, bem como ouvir a população e permitir a sua participação nas decisões administrativas do Judiciário e do Ministério Público, e no momento de vitaliciamento de juízes e promotores, além de reduzir os custos e exigir o aperfeiçoamento permanente dos profissionais, como gerenciamento do trabalho, pois senão não estaremos defendendo a sociedade, mas os nossos interesses pessoais e institucionais. E se não conseguimos administrar nem as nossas próprias instituições, não é crível imaginar que seja justo administrar indiretamente o país. Caso contrário, saímos da ditadura da farda e entramos na ditadura da toga.
* Promotor de Justiça em Minas Gerais. Especialista em Processo pela UFU e Mestrando em Direito pela UniFran-SP.
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