O tema é complexo. As variáveis são muitas. Muitos os aspectos que concorrem para o produto final, que todos conhecemos.
O caso da escrivã que teve suas roupas arrancadas por colegas policiais, em busca de provas de um ilícito. Tal selvageria foi gravada e acabou chegando à mídia. E só assim as medidas administrativas e judiciais cabíveis foram tomadas.
O Poder do Quarto Poder.
A exposição midiática das cenas absurdas de uma mulher (infratora ou não, não importa aqui) sendo moral e psicologicamente violentada por um bando de trogloditas travestidos de policiais foi o que determinou todos os procedimentos de apuração e punição subsequentes.
Não fosse o vazamento das imagens e sua reprodução à saciedade na internet, os brutamontes e seus fiadores continuariam dentro da Corregedoria da Polícia Civil, protegidos por "superiores", praticando tais descalabros.
Certamente, este não foi um caso isolado. Muitos fatos parecidos e até mais escabrosos devem acontecer todos os dias dentro de dependências policiais. E o pior: envolvendo cidadãos desprovidos de qualquer possibilidade de reação.
Até quando dependeremos da "sorte" de informações sobre ilícitos cometidos por agentes públicos vazarem para a mídia para termos finalmente alguma providência das autoridades e reparação dos direitos violados?
O artigo abaixo nos ajuda a refletir um pouco mais sobre estas questões.
Respeito à Lei ou WikiLeaks?
As cenas da escrivã sendo despida à força por policiais da Corregedoria em São Paulo suscitaram uma enorme perplexidade.
Muitos se perguntaram: se a polícia faz isso com os próprios policiais, o que não fará com o cidadão comum?
A dúvida do governador Geraldo Alckmin foi outra: como um vídeo oficial da ação policial se tornou público?
O governador se comportou no episódio mais ou menos como o marido que ciente da traição da esposa no sofá da sala, decide vender o móvel.
Mas talvez valha a pena se questionar o que teria acontecido se as imagens jamais chegassem ao YouTube.
O inquérito que apurava eventual abuso de autoridade foi arquivado, a pedido da promotoria. O MP entendeu, que apesar de ter havido "um pouco de excesso na hora da retirada da calça da escrivã", não havia no ato qualquer intuito libidinoso e isso bastou para isentá-los.
No âmbito disciplinar, os policiais chegaram a ser chamados de corajosos e destemidos.
Depois que o vídeo veio à tona, no entanto, tudo mudou.
Promotores do grupo de controle externo da polícia criticaram fortemente a ação. Os policiais foram afastados e a corregedora-geral perdeu seu cargo de confiança.
A mudança de comportamento não destoa, em verdade, de como a própria sociedade encara os excessos da repressão.
A violência policial está longe de ser uma novidade entre nós. Mas só quando ela nos é mostrada sem pudores, com imagens em relação às quais não se pode fechar os olhos, é que desperta indignação.
Longe dos olhos, longe do coração.
A edição da lei da tortura foi um nítido exemplo da importância das imagens furtivas.
O Brasil era signatário há anos de um tratado no qual se obrigava a reprimir o abuso de agentes públicos, mas as reivindicações para a tipificação do crime não sensibilizavam os parlamentares.
A lei só foi proposta, e aprovada em curtíssimo prazo, quando as cenas da violência policial na Favela Naval, filmadas por um cinegrafista oculto, foram mostradas em rede nacional.
A tortura não nos era desconhecida - apenas suportável quando não éramos obrigados a encará-la de frente.
A situação precaríssima dos encarcerados no país não é lá muito diferente.
É preciso uma rebelião daquelas em que cabeças são cortadas, ou fotos de corpos presos empilhados em contêineres, para que comecemos a supor que, afinal, alguma coisa está fora da ordem.
Analisando as atrocidades que tem visto em inúmeras inspeções carcerárias país afora, um juiz auxiliar do Conselho Nacional de Justiça chegou à conclusão que a sociedade tolera as graves violações porque, no fundo, acredita que o criminoso mereça vingança.
Faz sentido.
A opinião de que precisamos de mais repressão, mais pena, mais prisões e menos direitos, é persistente na sociedade. E as críticas aos abusos da punição são bem mais esporádicas.
Mesmo que já estejamos na faixa do meio milhão de presos, sem contar os adolescentes infratores, continuamos a clamar que o Brasil é o celeiro da impunidade, e pedir por mais e mais cadeia.
Quem se opõe a isso e luta pela preservação de garantias fundamentais é taxado de defensor dos "direitos humanos para bandidos". A ojeriza à utilização dos instrumentos de defesa, como a recente crucificação do habeas corpus, faz com que todo advogado seja considerado um pouco criminoso.
Enquanto isso, as punições por tortura, como se sabe, são irrisórias.
O receio de denunciar, a desconfiança dos operadores do direito, a necessidade de preservar como legítimas provas obtidas de forma ilícita, tudo isso vitamina a enorme cifra negra da tortura.
Mas não é só.
A ânsia de punir, a comoção causada pela contínua exploração midiática dos crimes e a demagogia dos parlamentares que a cada vítima famosa propõem novas leis, acaba por moldar nossa forma de tratar o crime. Com o máximo de espetáculo e o mínimo de limites para a repressão.
Tudo isso vai bem, até que as duras imagens nos cheguem, de alguma forma, contrabandeadas da realidade.
Quando se vê, a barbaridade das consequências enfim nos assusta e nos comove.
Talvez por isso o governador tenha se preocupado tanto com o vazamento do vídeo.
Mas aí seria o caso de se perguntar: para a garantia dos direitos, ao invés de pregar o respeito à Constituição, teremos de recorrer ao Wikileaks?
Marcelo Semer, no blog Sem Juízo
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