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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

"Doutora" em quê?

Primeira coisa: o cidadão e a cidadã precisam saber que "doutor" é quem tem doutorado. Um título universitário, obtido após anos de estudo, pesquisa e defesa de tese, geralmente precedido por um mestrado.

Começa por aí.

Quando o cidadão e a cidadã assumirem uma postura menos subserviente, mais altaneira, as coisas começarão a tomar um outro rumo.

Não se pode esperar que quem detém o poder tenha a grandeza de abrir mão dele ou compartilhá-lo. Pode acontecer. Mas não é a regra.

A revolução começa no dia a dia. Nas pequenas coisas. Nas situações mais singelas. De baixo para cima. Nas ruas e nas praças, como acabaram de nos ensinar os egípcios. Mas também em cada situação particular do cotidiano.

Sem tiro. Sem bomba. Sem sangue. Sem morte. Sem estardalhaço.

Com cidadania.

A Constituição diz que todos são iguais perante a lei, mas uma situação do cotidiano como a relatada abaixo demonstra claramente, descaradamente, até, aquilo que todos estamos cansados de saber: uns são "mais iguais" que os outros... Alguns são infinita e dolorosamente "mais iguais". Como a "doutora" da estória abaixo.

Será que a "doutora" fez doutorado? Por que ela se coloca acima do Bem e do Mal, e pior: acima das leis?!... Quem lhe delegou tanta importância e poder? Quem a transformou numa "cidadã de primeiríssima classe", numa VIP (Very Important Person), com direito a rir, tripudiar, menosprezar não apenas uma simples empregada doméstica, mas todos nós?


A procuradora e a empregada
RUTH DE AQUINO


Era uma noite de segunda-feira. Há um mês, a procuradora do Trabalho Ana Luiza Fabero fechou um ônibus, entrou na contramão numa rua de Ipanema, no Rio de Janeiro, atropelou e imprensou numa árvore a empregada doméstica Lucimar Andrade Ribeiro, de 27 anos. Não socorreu a vítima, não soprou no bafômetro. Apesar da clara embriaguez, não foi indiciada nem multada. Riu para as câmeras. Ilesa, ela está em licença médica. A empregada, com costelas quebradas e dentes afundados, voltou a fazer faxina.
Na hora do atropelamento, Ana Luiza tinha uma garrafa de vinho dentro da bolsa. Em vez de sair do carro, acelerava cada vez mais, imprensando Lucimar. Uma testemunha precisou abrir o carro para que Ana Luiza saísse, trôpega, como mostrou o vídeo de um cinegrafista amador.
Rindo, Ana Luiza disse, para justificar a barbeiragem: “Tenho 10 graus de miopia, não enxergo nada”. E, sem noção, tentou tirar os óculos do rosto de um rapaz. A doutora fez caras e bocas na delegacia do Leblon. Fez ginástica também, curvando e erguendo a coluna. Dali, saiu livre e cambaleante para sua casa, usando um privilégio previsto em lei: um procurador não pode ser indiciado em inquérito policial. Não precisa depor. Não pode ser preso em flagrante delito. Não tem de pagar fiança. A mesma lei exige, porém, de procuradores um “comportamento exemplar” na vida. Se Ana Luiza dirigia bêbada, precisa ser afastada. Se estava sóbria, também, pela falta de decoro.
Foi aberta uma investigação disciplinar e penal contra ela em Brasília, no Ministério Público Federal. Levará cerca de 120 dias. Enquanto seus colegas juízes a julgam, Ana Luiza Fabero está em “férias premiadas” no verão carioca. Ela não respondeu a vários e-mails e a assessoria de imprensa da Procuradoria informou que o procurador-chefe não falaria nada sobre o assunto porque “o processo está em Brasília”.
Lucimar está traumatizada, com medo de se expor, porque a atropeladora tem poder. Não procurou um advogado. Nasceu na Paraíba e acha que nunca vai ganhar uma ação contra uma procuradora do Trabalho. Lucimar recebe R$ 700 por mês, trabalha em casa de família, tem um filho de 6 anos e é casada com Aurélio Ferreira dos Santos, porteiro, de 28 anos. Aurélio me contou como Lucimar vive desde 10 de janeiro, quando foi atropelada na calçada ao sair do trabalho: “Minha mulher anda na rua completamente assustada e traumatizada. Estou tentando ver um psicólogo, porque ela não dorme direito, acorda toda hora com dor. É difícil até para ela comer, porque os dentes entraram, a boca afundou. Estamos pagando tudo do nosso bolso, particular mesmo, porque no hospital público tem muita fila”.
A atropelada, traumatizada, nem procurou advogado. Acha que nunca ganharia uma ação contra a doutora.
Lucimar quebrou duas costelas, o joelho ficou bastante machucado, o rosto ficou “todo deformado e inchado”, segundo o marido. Ela tirou uma licença médica de dez dias, mas foi insuficiente. Recomeçou a trabalhar há duas semanas, ainda com muitas dores.
O encontro entre a procuradora e a empregada é uma fábula de nossa sociedade desigual. A história sumiu logo da imprensa. As enchentes de janeiro na serra fluminense fizeram submergir esse caso particular e escabroso. Um mês seria tempo suficiente para Ana Luiza Fabero ao menos telefonar para a moça que atropelou, desculpando-se e oferecendo ajuda. Nada. Além de falta de juízo, ela demonstrou frieza e egoísmo. Vive na certeza da impunidade.
“Somos um país de senhoritos, não carregamos nem mala”, diz o antropólogo Roberto DaMatta, autor do livro Fé em Deus e pé na tábua. DaMatta associa a violência no trânsito brasileiro a nossa desigualdade. Usamos o carro como instrumento de poder e dominação social, um símbolo do “sabe com quem você está falando?”.
“Dirigir um carro é na verdade uma concessão especial, porque a rua é do pedestre”, diz DaMatta. Mas nós desrespeitamos o espaço público. “No caso da procuradora e da empregada, juntamos uma pessoa anônima com uma impunível”, afirma. O Estado é usado para fortalecer o personalismo, a leniência e para isentar as pessoas de responsabilidade física. Em sociedades como a nossa, onde uns poucos têm muitos direitos e a grande massa muitos deveres, Lucimar nem sabe que pode e deve lutar.
Revista Época

(os destaques são do ABC!)

7 comentários:

  1. Olá Sônia,
    Vc tem razão: somente são tratados de doutores aqueles que fizeram doutorado.
    As duas únicas exceções, implantadas através de lei assinada pelo imperador Pedro II, são para médicos e advogados.
    Abs!

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  2. ZCarlos, por favor me envie a fonte que fundamenta sua afirmação. Fui consultar a Wikipédia, e só encontrei a informação abaixo, que coincide com o meu ponto de vista:

    "O título de Doutor aos advogados no Brasil

    Em 1827 por lei imperial de D. Pedro I o título de doutor passou a ser concedido aos advogados que após se formarem no bacharelado defendessem uma tese, similar ao doutorado por dissertação do Reino Unido, sendo esse grau exigido aos advogados que quisessem seguir carreira acadêmica..[4] A maneira para se conquistar o doutorado em Direito durante o período imperial consistia do bacharel defender uma tese diante de uma banca de nove professores, esses procedimentos foram "alterados" com o estabelecimento do doutorado acadêmico pela Lei nº 9.394/96 (Diretrizes e Bases da Educação), que requer o doutorando cursar um programa de doutorado antes da defesa da tese. O título é hoje reservado aos advogados que finalizarem com sucesso o doutorado em direito ou doutorado em ciências jurídicas em instituições de ensino autorizadas a concederam tal título."

    Segundo a Wikipédia, trata-se de D. Pedro I. E deveria haver "defesa de tese", além do diploma. E esta lei imperial e seus procedimentos foram revogados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996.

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  3. A questão não é semântica, diz respeito à impunidade e ao coprorativismo que resultam em punições de 120 dias de licença médica e aposentadorias compulsórias quando muito, isto após processos em "segredo de justiça" e "instâncias superiores"...

    Por que será que temos PM's tão truculentos torturando em todos os estados do Brasil?

    - É que eles tem a certeza que os "DÔTORES" vão acobertar todos os "excessos cometidor"!!!

    Coisa boa é ser serviçal de DÔTOR!!!

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  4. A coisa é muitíssimo grave. Não se trata de ter direito ou não de ser chamado de "doutor". O problema é saber "doutor em quê"... No caso da procuradora citada, doutora em Justiça e em Direito é que não é... Você disse bem, Gilberto: a questão é a IMPUNIDADE. O cara tem um diploma de Direito, e já passa a ser "cidadão de primeira classe", com todos os direitos e nenhuma obrigação. As obrigações ficam para os cidadãos de quinta, como nós e a empregada agredida... Isso é viver numa "democracia", num "Estado de Direito"? Claro que não! Isto é Oligarquia, Aristocracia... e Plutocracia (Poder do Dinheiro). Abraços.

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  5. Sonia se puder leia:

    http://gilbertodeazevedo.blogspot.com/2011/01/democracia-ou-plutocracia-com.html

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  6. Sônia, realmente foi Pedro I, e não II como constou no comentário anterior.
    Veja o texto a seguir. Pode ser encontrado em http://jusvi.com/artigos/15947
    Gilberto Scarton, em estudo direcionado para diversas áreas, conclui, com fundamentos legais histórios, que o “doutor” do advogado e do médico é legítimo, pois, surgiu, se fixou e se mantém por longa tradição, por especial e espontânea deferência dos cidadãos:
    “Os advogados
    O título de "doutor" foi outorgado, pela primeira vez, por uma universidade, a um advogado, em Bolonha, que passou a ostentar o título de ‘Doctor Legum’.
    Entre nós, a tradição de se chamar o advogado de "doutor" remonta ao Brasil Colônia. Naquela época, as famílias ricas prezavam sobremaneira ter em seu meio um advogado (e também um padre e um político). O meio de acesso a esses postos era a educação.
    O advogado - conhecedor de leis, detentor de certo poder de libertar e de prender - assenhorava-se desse poder mediante formação privilegiada. A tradição logo transformou o termo em sinônimo de posição superior dentro da escala social.
    Há que se mencionar ainda o Alvará Régio, editado por D. Maria, a Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a ter o direito ao tratamento de "doutor". E o Decreto Imperial (DIM), de 1º de agosto de 1825, que deu origem à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que "cria dois Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais; introduz regulamento, estatuto para o curso jurídico; dispõe sobre o título de doutor para o advogado".
    (...).
    Entre os advogados, há quem pense que os médicos pretendem monopolizar o título de doutor, primeiramente empregado por advogados. Entre médicos, há quem considere que enfermeiros e fisioterapeutas que se intitulam "doutores" fazem propaganda enganosa, dando a impressão de serem médicos. Entre os pós-graduados que cursam doutorado e defendem tese há quem julgue que somente eles podem ser chamados de doutores.
    Constatada a polêmica, e depois do que se escreveu até aqui, apresentam-se algumas conclusões, abertas a críticas e a outros considerandos.
    1. O "doutor" do advogado e do médico surgiu, se fixou e se mantém por longa tradição, por especial e espontânea deferência dos cidadãos, dos utentes da língua. Uso legítimo, pois, "O que o simples bom senso diz é que não se repreende de leve num povo o que geralmente agrada a todos", disse o poeta Gonçalves Dias. Bem mais antiga é a sentença de Horácio ao se referir ao uso, que ele considera proponderante na interação lingüística : "Jus et norma loquendi" ( A lei é a norma da linguagem.)
    2. Entende-se, pois, que a língua é uma questão de usos e costumes. Que os falantes são os senhores absolutos de seu idioma. Que os usos lingüísticos não se regulamentam por decretos, por imposição de resoluções. A lei, em questões lingüísticas, é ilegal. Quem ousa legislar sobre o que se deve e o que não se deve dizer incorre em abuso de poder. É uma atitude irracional e irrealista, pois nada altera o que é de uso consagrado. Aos que se insurgem e vociferam contra tais usos, que têm direitos de cidadania, Mestre Luft lembrava a frase: "Os cães ladram e a caravana passa".
    ...
    Contudo, creio que por causa desse doutorado, deixamos de comentar a questão principal e ficamos apenas na secundária. E o crime da "Dra". Ana Luiza Fabero? Ficará impune por causa de seu (dela) doutorado?
    Abs!

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  7. Desculpe, ZCarlos, mas não tenho "paciência" pra este tipo de discussão, que me parece ociosa... Se o uso é do tempo do Império, está mais do que na hora de ser modificado. Estamos no século XXI, Terceiro Milênio. Eu já mudei há tempos esse comportamento, até porque venho do meio acadêmico. Trato advogados/advogadas sem qualquer saber jurídico, como os há aos montes, de sr. e sra. É claro que se eu me dirigir ao Dalmo Dallari, ao Fábio Konder Comparato, ao Celso Bandeira de Melo... eu direi "doutor". Eles fizeram doutorado, mas mesmo se não tivessem feito, detêm grande saber jurídico. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação já determinou o uso correto, como citei. O uso do termo está intimamente ligado não a "deferência", mas a "subserviência", no meu entendimento. Pra mim, não existem cidadãos de primeira ou segunda ou terceira classe... Portanto, não há razão para tal uso. Eu não me detive na questão "secundária". O crime da "doutora sem doutorado" provavelmente ficará impune. Não só pelo título que ela ostenta, mas sobretudo pelo dinheiro, poder, classe social e todos os privilégios advindos disso.

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